Conseguir reconhecer quem são os inimigos do presidente é tarefa importante, pois assim conseguimos reconhecer quem segue ombro a ombro com a gente e quem pode ser uma aliança tática
Vitor Ahagon*, Pragmatismo Político
O discurso começa agradecendo a Deus pela sua vida, pela missão de presidir o Brasil e pela oportunidade de restabelecer a “Verdade”. Foi assim que Jair Bolsonaro começou seu discurso de abertura da ONU. Muito se especulou sobre qual seria a postura do presidente diante da comunidade internacional, tendo em vista a queimada da Amazônia e as trocas de farpas com Macron. Enfim, alguns analistas diziam que Bolsonaro iria ter que baixar a bola e fazer um discurso mais contemporizador, já outros diziam que reforçaria a ideia de soberania nacional.
Quando estava me preparando para ouvir o discurso, pensei: “bom, qual vai ser o recado que ele vai dar para as lideranças mundiais?”. Mas, na medida em que ele falava, com os olhos apertadinhos porque estava lendo o discurso pela tela à sua frente, numa mistura de riso e desespero, percebi que o interlocutor da sua fala não eram as pessoas que estavam na abertura, mas nós, aqui do Brasil.
Alguns disseram que Bolsonaro discursou para seu eleitorado, no entanto, conforme Bolsonaro vomitava as suas “verdades”, percebi que também estava falando para os seus inimigos. Meio que dizendo: “Olha, vocês, cuidado, vou te pegar!”. Partindo desse ponto de vista, me fiz uma nova pergunta: “quem seriam os inimigos do presidente?” Enfim… a lista é extensa, indo desde à direita moderada até a esquerda radical, passando por movimentos sociais chegando até mesmo ao terceiro setor.
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Conseguir reconhecer quem são os inimigos do presidente é tarefa importante, pois assim conseguimos reconhecer quem segue ombro a ombro com a gente e quem pode ser uma aliança tática ou quem não vai seguir com a gente nem à distância, mesmo que da visão de Bolsonaro seja uma ameaça.
Neste sentido, os grupos mais distantes de nós, porque estamos à baixo e à esquerda, são, certamente, a França e a Alemanha. Estes dois países foram criticados por Bolsonaro por serem vistos como países que buscam interferir na soberania nacional do Brasil, o que é uma mentira, porque o que afasta Bolsonaro desses países europeus seria muito mais o alinhamento automático que Bolsonaro tem com os Estados Unidos do que qualquer outra coisa.
Apesar de Emmanuel Macron e Angela Merkel terem se posicionado de maneira dura diante dos últimos acontecimentos, como a queimada da Amazônia, sabemos que na real o que eles querem é também lucrar com a commodities da Amazônia, só que com o selo de sustentável. Bom, retiramos da nossa lista como aliados estes dois países.
Outros países também foram citados por Bolsonaro de forma contundente, como aconteceu com Cuba e Venezuela. O ataque do presidente foi no sentido de que estes dois países, por serem países socialistas, são ditaduras. O que foi engraçado é que quando o presidente falou da China, falou muito bem, pois a China seria uma parceira comercial, nessa hora ele resolveu ser pragmático.
Muito bem, podemos ficar horas e horas debatendo se estes países latino-americanos são ou não socialistas, ou se são ou não ditaduras, mas demarcando nossa posição – sempre à baixo e à esquerda – certamente, podemos afirmar que estes países possuem governos autoritários, inclusive com a sua própria população. Por mais que os benefícios sociais que cada um destes governos construíram, isso não exclui o fato de que diversos setores da sociedade de cada um destes países foram duramente perseguidos, como o movimento anarquista e LGBTQI+, por exemplo. Enfim… podemos tirar esses dois países da nossa lista de aliados também.
Seguindo a lista de inimigos do presidente, uma palavrinha rondou todo seu discurso, o socialismo. Nesse espectro, Bolsonaro coloca um tanto de gente, homogeneizando de forma grosseira grupos que na realidade são muito diversos, mas que de fato, para ele não tem muita diferença. Para Bolsonaro, socialistas podem ser militantes do Partido dos Trabalhadores, o Foro de São Paulo, o “marxismo cultural” e o que ele chamou de terroristas políticos, como Cesare Battisti, Juan Arrom, Victor Colman, Anúncio Marti e Maurício Hernández Norambuena. Deste grupo, por conta da sua abrangência e de um posicionamento mais marcadamente progressista e de esquerda, já podemos perceber possíveis alianças com alguns deles e com outros, de jeito nenhum.
Não vou deixar de dizer, desde um ponto vista à baixo e à esquerda, que uma aliança com o PT seria muito difícil. Os 15 anos de governo do PT a nível federal nos ensinou duas coisas. Primeiro, para que o PT pudesse realizar algumas medidas sociais, o fez em troca de uma conciliação de classes bizarra; em segundo lugar, o Partido dos Trabalhadores aprofundou medidas neoliberais prejudicando muitos daqueles que estão aqui em baixo, como os sem terras e indígenas. A educação nos governos petistas foi transformada em mercadoria tanto quanto qualquer outro governo, mesmo aqueles que têm como mascote o pobre do tucano. O capitalismo inclusivo do PT, agudizou uma alienação das forças organizadoras dos movimentos sociais que estes não conseguiram reagir de forma tão eficaz quanto poderiam quando as eleições elegeram o facínora. Por isso, seria difícil, muito difícil uma aliança com quem nos deixou uma lei antiterrorista, não esqueçamos disso.
Já os chamados “terroristas políticos”, por mais que seus grupos pudessem ser marcados por uma rígida estrutura hierárquica de matriz marxista-leninista, ainda sim estão no campo revolucionário, o que nos coloca no mesmo horizonte de transformação radical da sociedade. Aliança tática, com toda cautela que devemos ter. Esta é a mesma posição em relação ao que Bolsonaro chamou de “marxismo cultural”, que nada mais é do que a imprensa que critica o governo, desde um ponto de vista progressista ou de esquerda, moderada ou radical, democrática ou revolucionária. Propagar a crítica e fazer diminuir o “mito” é fundamental para a construção do amanhã, por isso estamos junto com as mídias independentes que buscam desmistificar o mito, mas não nos esqueçamos que para o Bozo, até a Rede Globo foi dominada pelo marxismo cultural, por isso é muito importante nos lembrar sobre os meios e os fins de nossa ação política. Nossa finalidade determina os meios escolhidos para atingirmos nossos objetivos, e não o inverso.
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Agora, aqueles e aquelas que temos que andar juntos, ombro a ombro, construindo novas formas de resistir e existir são, definitivamente, os movimentos sociais que foram ininterruptamente atacados por Bolsonaro. O movimento indígena – talvez o movimento mais autonomista em sua natureza-, deve ser apoiado por todos/as aqueles/as que buscam um mundo mais justo, livre e igualitário. A luta indígena diz respeito não apenas a criação de um mundo melhor, mas a nossa própria existência enquanto espécie humana.
Outro movimento que deve ser impulsionado, apoiado e fortalecido é o feminista. Bolsonaro tenta agredir o feminismo quando falou acerca da “ideologia de gênero”. O que também foi uma investida contra o movimento LGTBQI+, pois tanto estes quanto aquele querem “corromper” as crianças, retirando delas sua condição “natural”. Tais movimentos também devem ser fortalecidos, principalmente por conta das diversas violências cotidianas que mulheres e LGBTQI+ sofrem diariamente diante de uma sociedade patriarcal, heteronormativa e misógina.
Todos devemos nos solidarizar e potencializar as pautas do movimento negro, pois a fala de Bolsonaro criminaliza, a todo o momento, a população negra, pobre e periférica quando diz combater a “criminalidade, os traficantes e as drogas”. Lembrando o ex-pantera negra e anarquista Lorenzo Kom’boa Ervin, o movimento negro deve criar grupos de autodefesa de suas comunidades e garantir a segurança de todas as pessoas dos ataques desses fascistas. Lembremos sempre: Não existe diálogo com supremacistas brancos!
E, finalmente, devemos fortalecer a Classe Trabalhadora (com o Tezão mesmo), que, de forma velada, foi atacada diversas vezes pelo discurso de Bolsonaro. Ao longo de toda sua fala, o presidente acenou para o capital internacional quando balbuciou palavras como “desburocratização” e “desregulamentação do mercado”, que para nós, as/os de baixo e à esquerda, significa uma vida mais difícil, certamente. O que não foi dito no discurso de maneira direta, sentiremos diretamente no nosso cotidiano. O desemprego está na casa dos 12,6 milhões de pessoas, diminui nossa margem de segurança em nossos trabalhos, e mesmo que o desemprego tenha caído 0,7%, isso não significa que essas pessoas tenham conseguido um melhor emprego. Essa queda pode significar que elas conseguiram um trabalho sim, mas com um salário abaixo do que ganhavam antes e com menos garantias. Elas também podem ter deixado de procurar emprego, já que o desalento triplicou entre os mais jovens ou podem ainda estar fazendo os famosos bicos, o que significa precarização e pauperização, não à toa que de junho de 2018 a junho de 2019 tivemos um crescimento da miséria extrema atingindo cerca de 13,2 milhões de brasileiros.
Esse ataque à classe trabalhadora, também é um ataque à classe trabalhadora organizada. Os sindicatos, perderam sua contribuição sindical, enfraquecendo essas entidades de classe frente aos interesses dos patrões. Os sindicatos já não conseguem fazer os tão habituais acordões que estamos acostumados/as a ver. Justamente por isso, os sindicatos têm pouquíssima representatividade frente a sua base, e em certa medida colaboraram bastante para isso, tendo em vista a intensa burocratização e dirigismo das entidades. Agora, como a burocratização e o dirigismo afastou a base do sindicato, a direção não consegue realizar grandes manifestações de massa para fazer frente a esses ataques que Bolsonaro e cia estão realizando.
Para finalizar, Bolsonaro foi até a ONU para fazer o Merchandising do Brasil e colocá-lo à venda, melhor dizendo, colocar a classe trabalhadora à venda, para que o capital internacional possa sugar até o talo todos e todas. Por isso é fundamental que toda a classe trabalhadora se organize seja nos sindicatos para desburocratiza-lo ou em coletivos de trabalhadores/as de sua categoria, fazendo a luta desde a base, pela ação direta e sua auto-organização.
*Vitor Ahagon é professor de história e membro da Biblioteca Terra Livre
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