América Latina: Un pueblo sin piernas, pero que camina
Construir caminhos solidários, igualitários e fraternos dentre tantos os infinitos que existiram, existem e existirão – e só pela conscientização política, uma luta feroz nas ruas e avenidas e uma Educação, como disse, crítica, pública e de qualidade que conseguiremos estancar as veias abertas da região
Luís Felipe Machado de Genaro*, Pragmatismo Político
Por vezes me pego refletindo, entre agonias e desilusões, sobre o mapa invertido da América Latina do artista uruguaio Joaquin Torres García, que o teria rabiscado em meados da primeira metade do século passado. Há neste mapa uma porção de significados simbólicos que olhando ao nosso redor, neste cenário histórico-político aterrador, parece, em alguns poucos momentos, me encher de esperança, enquanto em outros, permaneço incrédulo e estático – não há transformação possível, penso. Como inverteríamos este mapa? Torres García imaginava um continente unido em oposição radical aos interesses do Norte global. Nas palavras do artista:
“Nosso norte é o Sul. Não deve haver norte, para nós, senão por oposição ao nosso Sul. Por isso agora pomos o mapa ao revés, e então já temos a exata ideia de nossa posição, e não como querem no resto do mundo. A ponta da América, desde agora, prolongando-se, assinala insistentemente o Sul, nosso Norte”.
Em um continente marcado por instabilidades seculares, corrupção pública e privada, desigualdades extremas entre classes sociais, descaso de governantes para com os direitos mais básicos e fundamentais de seus povos, violência estatal e cotidiana naturalizados em muitas de suas regiões e o parasitismo opulento de grupos dominantes que nas palavras de Darcy Ribeiro, “são, de fato, muito mais parecidas com o patriciado escravista romano do que com qualquer burguesia clássica”, o cenário é desolador.
Por que, questiona o historiador Fábio Luís Barbosa dos Santos, “de tempos em tempos, somos invadidos pelo sentimento desesperador do eterno retorno do mesmo?” Durante o raiar do século XXI até alguns atrás, parecíamos estar vivendo uma integração civilizadora entre os países da América, mesmo com as mais diferentes particularidades, tropeços e concertações políticas destes mesmos países.
Hoje, populações estão adoecendo; um universo online de notícias falsas e impropérios dos mais diversos ameaça não só a sanidade mental de suas gentes, mas as instituições políticas frágeis do continente; classes vulneráveis contam com cada vez menos acesso aos direitos humanos; senão privatizadas e cada vez mais inacessíveis pela falta de financiamento, universidades e escolas – Educação pública, crítica e de qualidade – parecem ser sonho cada vez mais distante; assassinatos e prisões de lideranças políticas populares na Colômbia, Equador, Argentina e Brasil tornaram-se cotidianos, recorrentes, como nos tempos do Condor; empregos informais e precarizados; enfim, uma vida cada vez mais difícil, acelerada, intensa e solitária em meio à multidão, nos assola. Seria este o destino reservado ao continente do labor?
O colombiano Gabriel García Márquez, narrando o general Bolívar em muitos de seus labirintos, num de seus mais belos romances, escreveu fictício diálogo entre ele o general Carreño: – Não me ocorre nada mais digno – concluiu. – Bem, mas pelo menos lá é a pátria – disse. – Não sejas bobo – disse o general Bolívar – Para nós a pátria é a América, e ela toda não tem jeito.
Leia aqui todos os textos de Luís Felipe Machado de Genaro
Que “jeito é este que não há” de que nos fala García Márquez em seu romance, pelos lábios do libertador Bolívar? A História, como imagina o senso comum, não é cíclica e nem se repete, não há fases e nem mesmo é linear perfeitamente construída em uma linha reta do passado ao presente, mas uma infinidade de sedimentos, camadas sobrepostas – talvez uma linha, sim, mas com infinitos caminhos tortuosos, abissais muitas vezes. Como escreveu Walter Benjamin, “cadeia de acontecimentos que acumula incansavelmente ruína sobre ruína”. O continente sul-americano se encontra em um destes caminhos.
Encurralado, mas resistente no Palácio La Moneda, em 11 de novembro de 1973, o presidente Salvador Allende, horas antes de um dos golpes militares mais sangrentos do continente serem desfechados pelas forças armadas, foi categórico: a História é nossa e a fazem os povos. “O drama ocorreu no Chile, pela desgraça dos chilenos, mas há de passar para a História como algo que aconteceu sem remédio a todos os homens deste tempo e que ficou em nossas vidas para sempre”, datilografou García Márquez em suas Reportagens Políticas.
Dramas semelhantes estariam se avizinhando para os dias que correm?
Precisamos guardar as desesperanças que nos acometem diariamente em algum lugar obscuro e distante, trancá-las às sete chaves, girar o continente como rabiscou Joaquin Torres García, e, como escreveu Darcy Ribeiro, “humanizar a nossa civilização” tão marcada por chicotes, torturas, violências, berros, pobreza e desumanidades.
Construir caminhos solidários, igualitários e fraternos dentre tantos os infinitos que existiram, existem e existirão – e só pela conscientização política, uma luta feroz nas ruas e avenidas e uma Educação, como disse, crítica, pública e de qualidade que conseguiremos estancar as veias abertas da região. Precisamos que nos devolvam – e teremos de lutar por isso! – a união entre os nossos povos e a alegria de viver, uma alegria perdida em um dos continentes mais belos e extraordinários da Terra.
*Luís Felipe Machado de Genaro é historiador, mestre em história pela UFPR e professor da rede municipal de Itararé