Nestes tempos de anti-intelectualismo, resgatar Darcy é devolver a autoconfiança ao povo brasileiro.
Rafael Molina Vita*
O procurador Deltan Dallagnol, figura central na Operação Lava Jato, enquanto exercia suas funções no Ministério Público, rodava o país palestrando sobre as “10 medidas anticorrupção”. Estes eventos revelavam um agente de estado que atribuía a si mesmo uma missão quase divina, a de purificação da política, e possuía a visão de que os colonizadores portugueses eram os responsáveis por nossa “desgraça”, pois seriam impuros, degredados, ao contrário dos ingleses, fruto da ética protestante, de religiosos com o objetivo de construir uma nação “pura”, os Estados Unidos da América. Nenhuma palavra sobre a nossa escravidão de três séculos (que como bem aponta Jessé Souza, não existia em Portugal) ou sobre nossa histórica e brutal desigualdade de renda e concentração de terras.
O final da história, todo mundo sabe. Em nome desta missão divina de purificação, a força tarefa da Lava Jato passou como um trator por todos os direitos e garantias constitucionais, direitos estes conquistados através de séculos de lutas sociais e esforços políticos em prol de um mundo mais fraterno, especialmente após a hecatombe provocada pela segunda guerra mundial.
Mais uma vez o moralismo de fachada se mostrou destruidor. Vivemos uma situação surreal, com o protofascismo se espalhando por vários setores da sociedade, promovendo ataques aos direitos humanos em todas as suas dimensões (direitos políticos, sociais e meio ambiente). Neste cenário, uma minoria da população se beneficia, através de palestras remuneradas, especulação financeira, privatizações e nepotismo. Em suma: mais uma vez a ética humanista é deixada de lado em favor do deus dinheiro, tão familiar aos estadunidenses.
Não consigo imaginar algo tão antagônico a essa concepção lavajatiana como o pensamento do antropólogo Darcy Ribeiro. Ele, que combatia o viralatismo do brasileiro e, ao contrário dos atuais dirigentes do nosso país, era um homem de fazimentos, ou seja, de realizações. Sua alma inquieta colaborou na criação da Universidade de Brasília, do Parque Indígena do Xingu. Foi o responsável pela criação dos Centros Integrados de Ensino Público (CIEP), pelo projeto cultural do Memorial da América Latina e pelo projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB). Suas obras, como o “O Povo Brasileiro- a formação e o sentido do Brasil” são reconhecidas internacionalmente.
Darcy não passou a vida escondido em um gabinete no sul do país. Viveu entre os índios, conheceu o Brasil profundo. Percorreu a América Latina em seu exílio imposto pela Ditadura Militar. Enfrentou os desafios da vida política como chefe da Casa Civil de João Goulart, vice-governador do Rio de Janeiro e senador. Toda essa experiência prática e acadêmica fundamentou sua confiança nas potencialidades do povo latino americano.
“Então, nós fizemos um povo. Um povo capaz de herdar 10 mil anos de sabedoria indígena, de adaptação ao trópico e fazer uma civilização tropical. Depois é que o Europeu chega aqui, plantando trigo. Esse povo está aí e eu digo que somos a nova Roma (…). E por que nova Roma? Somos a maior massa latina”.
É inconcebível a ausência das principais obras dos intelectuais responsáveis pelo entendimento da formação no Brasil na grade curricular dos cursos de Direito. Como atuar de acordo com o interesse público sem entender as contradições e complexidades da sociedade brasileira? Sem estudar Celso Furtado, Milton Santos, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Nelson Werneck Sodré?
Para avançarmos como civilização, precisamos disputar a guerra cultural que procura nos reduzir a capachos estadunidenses, portadores de uma inferioridade congênita que sempre nos reduzirá a um papel de menor importância no sistema capitalista mundial.
A Lava Jato e o neoliberalismo tardio de Paulo Guedes são os maiores exemplos de que essa cultura, difundida nos meios acadêmicos e de comunicação de massa, tem um potencial altamente destrutivo, não poupando nem as grandes Empresas de tecnologia nacional. A história do Brasil, especialmente a partir da revolução de 1930, se traduz no choque dessas duas concepções de Nação.
“Sobre a propalada preguiça latino-americana, deixe-me dizer que dizer-lhe que um operário da Volkswagen do México ou de São Paulo trabalha o mesmo ou mais que seu colega alemão, ganhando um salário cinco vezes menor. Os diretores e gerentes de cá é que ganham dez vezes mais que os de lá. O mesmo ocorre como o boia-fria do Paraná ou o vaqueiro da Bahia, que trabalham mais do que qualquer peão do Texas ou camponês galo, labutando em condições muito piores e ganhando dez vezes menos”.
Nestes tempos de anti-intelectualismo, resgatar Darcy é devolver a autoconfiança ao povo brasileiro.
*Rafael Molina Vita é formado em Direito, membro do Coletivo Estadual de Direitos Humanos do PT/SP e da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia).
Referências:
RIBEIRO, Darcy. Mestiço que é bom! Rio de Janeiro: Revan, 1996;
RIBEIRO, Darcy. América Latina: A pátria grande. São Paulo: Global, 2017.
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