O que já se sabe do dia 14/03/2018 na vida de Jair Bolsonaro
São muitas as perguntas que a cobertura jornalística não tem feito sobre a possível participação do clã Bolsonaro no assassinato de Marielle Franco. E a cada dia que passa aparecem mais promotores bolsonaristas militantes em funções chave na investigação interminável
Em jornalismo, usamos uma técnica para coberturas complexas. Consiste em juntar todos os elementos concretos e, assim que possível, montar uma narrativa plausível que os encaixe.
A partir daí, a cobertura vai filtrando as informações, para focar naquelas essenciais para comprovação ou correção da narrativa em curso.
Anos atrás o Ministério Público Federal descobriu essa técnica e a batizou de “teoria dos fatos” (não confundir com a teoria do domínio do fato), mas com algumas jabuticabas bem brasileiras, características típicas desses tempos de Lava Jato: desprezo a todos os fatos que desmentirem a narrativa original.
Os burocratas esconderão os fatos que comprometam a narrativa porque cada operação demanda recursos e um tiro errado significaria desperdício. Os marqueteiros desprezarão porque a narrativa foi vazada para jornalistas amigos, e ficaria chato admitir o erro. A Lava Jato desprezará porque sua intenção é política.
A teoria do fato de Bolsonaro
Entendido isso, vamos a uma teoria do fato sobre como foi o dia 14 de março de 2018, dia do assassinato de Marielle, na vida de Jair Bolsonaro.
Primeiro, vamos aos fatos objetivos:
1. Um twitter de uma jornalista respeitável, Thais Bilenky, no dia 14 de março, informando que Bolsonaro seguiria para o Rio por estar com problemas de intoxicação.
2. O depoimento do porteiro do Condomínio Vivendas da Barra, dizendo ligou para Bolsonaro para obter autorização para a entrada de Elcio Queiroz no condomínio. E a anotação no papel indicando a casa de Bolsonaro como destino.
3. A sessão da Câmara mostrando que, naquele dia, Bolsonaro estava lá, participando das sessões.
4. O sistema de telefonia do condomínio, que permite transferir ligações para celulares.
5. Posteriormente, vazamentos aos Bolsonaro de trechos da investigação de interesse deles, mais a identificação de dois promotores como bolsonaristas ativos, mostrando acesso da família às investigações.
Teoria do fato
Em cima desses dados, vamos formular uma hipótese – repito, hipótese – sobre o que teria ocorrido naquele dia.
1. Bolsonaro articulou uma reunião com Ronnie Lessa (do Escritório de Crime) e Elcio Queiroz para o dia 14, no Condomínio Vivendas da Barra.
2. Preparou um álibi para faltar à sessão daquele dia na Câmara Federal. A jornalista Thais Belinski foi informada de que ele iria voltar para o Rio de Janeiro por um problema de intoxicação alimentar. Era um álibi curioso: viajar intoxicado, podendo descansar e ser tratado em Brasilia.
3. Naquele dia, trocando ideias com assessores, Bolsonaro se deu conta de que a ida para o Rio de Janeiro poderia expô-lo. Assim, decidiu ficar na sessão da Câmara, onde apareceu sem nenhum sinal de quem estava intoxicado. A reunião no Condomínio foi mantida com os demais participantes.
4. Ao chegar ao condomínio, Élcio deu o número da casa de Bolsonaro. O porteiro ligou para o celular anexado ao número, Bolsonaro atendeu em Brasília e autorizou a entrada. E Élcio rumou para a casa de Ronnie Lessa, que fica na mesma rua da casa de Bolsonaro, cerca de duas ou três casas depois.
5. Quando a reunião foi identificada, após perícia no celular de Ronnie Lessa, os Bolsonaro foram informados por aliados infiltrados nas investigações, que atrasaram a perícia a fim de permitir que as provas fossem alteradas.
Repito: é uma hipótese de trabalho.
Motivação
Conforme já divulgado, Bolsonaro era radicalmente contrário à intercvenção militar no Rio de Janeiro, que considerava uma maneira de fortalecer o governo Temer e preparar a chapa Temer-Rodrigo Maia para as eleições de 2018, reduzindo a possibilidade de uma intervenção militar ampla.
Um dos modos de operação dos porões, quando Silvio Frota foi alijado da disputa pelo poder, era planejar atentados e imputar à oposição.
Apurou-se que, dias antes do assassinato de Marielle, Ronnie Lessa pesquisou no Google figuras críticas à intervenção militar. E fixou-se no nome de Marielle, que havia sido indicada para uma comissão na Câmara de Vereadores, para fiscalizar a intervenção.
As investigações
Desde o início, se afirmava que as investigações esbarravam em “gente poderosa” no Rio, por isso não avançavam. Até agora, oficialmente a “gente poderosa” que apareceu foi um conselheiro do Tribunal de Contas do Município, o tal Brazão. Isso em um estado em que ex-governadores, conselheiros do Tribunal de Contas do Estado, deputados federais e estaduais foram presos. É factível supor que toda a manipulação da Polícia Civil e, especialmente do Ministério Público Estadual, foi por influência de Brazão. A cada dia fica mais nítida a influência do bolsonarismo sobre promotores estaduais.
A elucidação do crime demandaria perícias e investigações isentas. Quem as fará? A cada dia que passa aparecem mais promotores bolsonaristas militantes em funções chave na investigação interminável.
Há duas maneiras dos promotores atuarem politicamente.
Encontrando um suspeito concreto, que assuma o crime e libere Bolsonaro das suspeitas.
1. Não encontrando, adiando a investigação indefinidamente.
2. Qual seria a alternativa? A Polícia Federal de Sérgio Moro.
O porteiro está sendo acusado de obstrução de justiça. Sérgio Moro encaminhou à denúncia à Procuradoria Geral da República. O caso caiu nas mãos do procurador Douglas Araújo, tido como “bolsonarista ferrenho”, segundo o Valor Econômico.
Insisto, é uma teoria do fato, uma narrativa que permite encaixar os principais elementos até agora divulgados. Quem tiver uma hipótese melhor, que as apresente, antes que calem-se para sempre as testemunhas.
A discussão inútil
O aparecimento do Twitter do dia de 14 de março de 2018, da jornalista Thais Bilenky, mencionando conversas com assessores de Bolsonaro, que teriam dito que ele faltaria a sessão e iria para o Rio, devido a uma intoxicação alimentar, suscitou enorme discussão.
O Twitter não dizia que Bolsonaro estava no Rio. Dizia de sua intenção de ir ao Rio naquele dia, fato reforçado pela descoberta de que seu gabinete comprara duas passagens de avião para o Rio naquele mesmo dia.
Abriu-se enorme e inútil discussão: Bolsonaro estava ou não no Rio no dia da morte de Marielle? Gastou-se esforço para um objetivo inútil. Se Bolsonaro havia comparecido à sessão na Câmara naquele dia, é evidente que não estava no Rio.
A questão a ser investigada era outra. Havia um enorme conjunto de evidências sobre sua intenção de estar no Rio naquele dia.
1. O Twitter da repórter.
2. A compra das passagens.
3. O registro na portaria do condomínio de que Helcio Queiroz mencionara a casa de Bolsonaro para obter autorização de entrada.
E há informações – que a imprensa burocraticamente evita – de que o sistema de telefonia do condomínio permite transferência para celulares. Portanto, seria perfeitamente factível que o porteiro tivesse transferido a ligação de Helcio para o celular de Bolsonaro.
Por que Bolsonaro desistiu de ir ao Rio?
A questão central era outra: porque Bolsonaro recuou no último momento, na ida ao Rio? Ele deveria ou não estar presente na reunião em que Élcio e Ronnie Lessa planejaram a morte de Marielle?
Colocando o foco correto, a cobertura jornalística sairia dessa masturbação midiática para focar nos pontos centrais:
1. Buscar explicações dos assessores sobre as razões de Bolsonaro ter afirmado que iria para o Rio devido a uma intoxicação alimentar, e ter participado da sessão da Câmara sem aparentar nenhum incômodo.
2. Confirmar se o sistema de telefonia do condomínio permitia ou não transferencia para celulares, especialmente de Bolsonaro.
3. Entender porque razão Carlos Bolsonaro – que só usava a casa no condomínio para ir à praia nos fins de semana – estava no condomínio naquele dia.
4. Insistir na perícia técnica do equipamento que registra as ligações.
5. Ouvir vizinhos sobre o relacionamento de Ronnie Lessa com os Bolsonaro. É inverossímil que ambos, vizinhos, ligados às milícias, não se conhecessem ou não compartilhassem os mesmos visitantes.