Cultura

Em Portugal, ator Wagner Moura denuncia a censura de Bolsonaro

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A fila para assistir ao filme Marighella em Lisboa dava voltas no quarteirão, enquanto no Brasil a obra foi censurada. O ator Wagner Moura denuncia: “Governo Bolsonaro infiltrou-se na cultura”. Filme, no entanto, não poderá ser exibido em cinemas de outros países enquanto estiver proibido no Brasil

Wagner Moura (Imagem/Reprodução/Correio Braziliense)

Inês Lourenço, Diário de Notícias

A fila para assistir ao filme Marighella dava a volta no Teatro Tivoli, em Lisboa, e a sessão com o ator e diretor Wagner Moura, acompanhado do roteirista Filipe Braga e de Paulo Branco, gerou uma onda gigante de aplausos e palavras de ordem. As razões que uniram os espectadores eram tanto exteriores ao filme como sobre o que se ia ver e no final a conversa com o público fez confluir as duas situações.

Marighella, a primeira realização do ator de Tropa de Elite e de Narcos, tem uma carregada marca política: Carlos Marighella (1911-1969), escritor, deputado e guerrilheiro brasileiro, esteve na linha da frente da resistência à ditadura militar do país. O filme acompanha a sua vida e luta, desde 1964 até à sua morte violenta, em 1969, e não tem medo de ser uma mensagem direta à atual realidade do Brasil.

Se Marighella, no seu tempo, foi considerado o “inimigo número um” do regime, o filme de Wagner Moura também paga um preço: a estreia no seu país está proibida, o que impede a sua exibição em Portugal, onde já tem distribuidora (Alambique Filmes). Em entrevista, o diretor explicou o quanto o seu filme é incômodo.

Apesar de se passar nos anos 1960, Marighella tem uma evidente ressonância do Brasil do presente. Qual foi a origem do projeto e como é que evoluiu até este momento da sua exibição em festivais?

Sempre me senti fascinado pela figura de Marighella, da mesma maneira que me perturbava ele ter sido apagado da história do Brasil. E em 2013 saiu a sua biografia, escrita por Mário Magalhães [na qual o filme se baseia]. Havia esse livro, existia também um documentário, e achei que um filme de ficção poderia ser um contributo interessante para recuperar a sua memória, no sentido de o dar a conhecer às pessoas, já que o cinema é uma arte mais popular do que a literatura. No começo, quis ser o produtor, mas depois achei que poderia ser um exercício desafiante para mim como diretor. Então, eu e o Filipe [Braga] fomos trabalhando o roteiro — durante esse tempo, fui fazendo Narcos –, e quando voltei já o Brasil e o mundo caminhavam em direção ao conservadorismo político, um moralismo evangélico muito forte no Brasil, em que o Bolsonaro se insinuava como a liderança da extrema-direita, mesmo que ninguém o levasse muito a sério. Estávamos em 2016, houve o golpe parlamentar que derrubou a Dilma Rousseff, e quando nós filmamos Marighella, no final de 2017, já estávamos no governo Temer e o Brasil já estava completamente polarizado.

Essa nova realidade teve reflexo na rodagem do filme?

Sem dúvida. Primeiro, foi muito difícil encontrar financiamento para o filme; sofreu um grande boicote financeiro e logístico, e recebíamos ameaças o tempo todo. Já se vivia um momento muito tenso, mesmo sendo o tempo de pré-eleição de Bolsonaro. Mas isso, de alguma forma, foi positivo, porque todos os que estavam envolvidos no filme ficaram imbuídos de um sentimento forte de urgência, um sentimento de que era mesmo preciso fazê-lo – o facto de os atores me terem pedido para que os nomes das personagens fossem os seus próprios nomes foi algo que me emocionou muito, porque é simbólico do comprometimento que eles tinham. Em Berlim, quando o filme se estreou no festival, estavam quase 30 pessoas, entre equipe técnica e atores. Gente que não tem dinheiro para comprar bilhetes de avião… mas eles queriam estar ali naquele momento especial.

Este filme tornou-se ele próprio a resistência.

Exatamente, o filme é um ato de resistência. E acaba por ser também a interceção do intuito que eu, como realizador, tenho, com o espírito do tempo, o Zeitgeist. Se este filme tivesse sido lançado em 2013, não seria a mesma coisa. Ele ganhou um contexto muito grande, e não me incomoda que, a propósito dele, se fale mais de política do que de cinema. É natural.

A escolha de Seu Jorge para interpretar Marighella também foi natural?

Muito. Mas a minha primeira escolha foi o Mano Brown, líder dos Racionais MC’s, o grupo de rap mais importante do Brasil. Mano Brown é um grande poeta, com um discurso forte e aguerrido… Ele era para mim a peça fundamental para uma personificação contemporânea do Marighella. O que aconteceu foi que os nossos ensaios chocaram com o mês em que os Racionais tinham mais shows, e imediatamente pensei no Seu Jorge, que é talvez um dos artistas mais talentosos que conheço. Ele canta bem, borda, pinta…

Marighella era para estrear neste mês no Brasil…

No dia 20 de novembro.

O que é que impede essa estreia?

O que se passa é que o governo infiltrou-se nas agências que fomentam a cultura no Brasil, colocou as suas pessoas lá dentro, e essas pessoas tornaram impossível, burocraticamente, a assinatura de qualquer documento que permita que um filme como Marighella estreie. É isto que se passa. E quando falo de Marighella falo também de qualquer outro filme, por exemplo, com temática LGBT. O próprio presidente tem uma declaração pública em que diz que “o cinema brasileiro precisa de um filtro”, porque não se pode deixar que filmes que “agridam a moral da família brasileira sejam produzidos no Brasil”.

Então não há uma previsão de estreia possível?

Não há qualquer perspetiva.

Enquanto figura do meio artístico e midiático, sente necessidade ou responsabilidade de se expressar politicamente?

Sinto. Mas isso sou eu… Durante a ditadura militar no Brasil, um cineasta brasileiro, Carlos Diegues, cunhou um termo de que eu gosto muito, “patrulha ideológica”. Que é a cobrança que a esquerda faz para que as pessoas se posicionem, falem e se exponham. Sou um homem de esquerda e sei que a esquerda é muito chata. Sei que há gente que tem medo ou não está preparada… É a mesma cobrança que existe, por exemplo, para que homossexuais saiam do armário. Sou contra isso. As pessoas devem colocar-se na medida das suas convicções. No meu caso, é natural, eu não conseguiria ser de outra forma. O que faço como artista é um depoimento.

Acha que o Brasil está a debater-se com um certo esbatimento da memória histórica?

A memória histórica, sim. E a memória recente também mostra isso: onde estavam os 38 milhões de pessoas que Lula tirou da miséria quando o prenderam ou quando derrubaram a Dilma? Onde estavam quando Bolsonaro foi eleito? As pessoas acostumam-se a uma condição e pensam que essa condição é dada e não que é conquistada. Hoje, com a deterioração da economia, o desemprego e as conquistas comprometidas, as pessoas começam a dar-se conta de que viveram um momento na história de um Brasil que não era assim. Pela primeira vez houve um presidente [Lula da Silva] que se preocupou em atacar o problema fundamental que o nosso país tem, que é a desigualdade social. Nunca houve tantos negros na universidade, tantos pobres saindo da linha de miséria e tanta gente acedendo à classe média. Isto é uma reflexão essencial sobre a memória. E a Academia, as artes, mesmo o jornalismo sério, tem uma função muito clara, porque as narrativas são facilmente manipuladas e transformadas.

A sessão que aconteceu no Teatro Tivoli, no passado domingo, e que já foi apelidada de “histórica” pela emoção política que animou a sala, tem equivalentes no percurso de Marighella em festivais?

Todas têm sido mais ou menos assim. Em Sydney foi assim, em Seattle, em Berlim então foi das mais emocionantes… O filme virou um símbolo da resistência. E eu fico muito feliz, porque ao mesmo tempo que sei que existe uma onda de ódio em cima de mim, existe também aquilo que se viu nessa sessão, muita gente que quer que este filme se estreie, por várias razões: pela memória do Marighella, pela situação do Brasil, pela liberdade de os brasileiros o poderem ver e por respeito pela nossa equipe. A sessão de domingo foi muito bonita.

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