Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político
Era 12 de janeiro de 2010. Milhões de pessoas ao redor do mundo ainda festejavam a chegada do ano-novo e rascunhavam, naquela terça-feira, os planos que levariam adiante na década que se iniciava. Enquanto isso, no coração do Caribe, um terremoto de magnitude 7 na escala Richter sacudia o Haiti. A pequena ilha, com dimensão territorial semelhante ao estado de Alagoas, sentia novamente o solo tremer.
As notícias chegavam pelos jornais e prendiam a atenção dos telespectadores. Minuto a minuto, via-se no noticiário imagens desoladoras. Crianças, adultos e velhos agonizavam soterrados pelo concreto, madeiras e detritos de toda natureza. Já não se distinguiam corpos em meio aos destroços, tudo foi reduzido a entulho. “O país sucumbiu”, “o Haiti foi virou pó”, alarmavam os jornalistas.
Atônitos, com olhos marejados e coração cindido, assistíamos ao thriller de horror que reduziu mais da metade do país a escombro e poeira. O Haiti (de novo ele) protagonizava mais uma tragédia.
No dia seguinte, 13 de janeiro, pelas ruas da capital Porto Príncipe, lugar que mais tinha sofrido com o terremoto, muitos sobreviventes buscavam parentes e amigos desaparecidos, enterravam os mor-tos em uma imensa vala comum e tentavam encontrar comida em meio as ruínas e ao forte cheiro de cadáveres apodrecendo à luz do dia.
Não há números exatos, mas calcula-se que cerca de 316 mil pessoas morreram e outras 350 mil ficaram feridas naquele que foi considerado o quinto maior terremoto da história mundial. Entre os desa-brigados, o número passou de 1,5 milhão e uma quantidade incalculável de traumas psicológicos irreversíveis.
A tragédia também ceifou a vida de 19 brasileiros, entre eles 18 militares que estavam em missão no país e a médica Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança. No momento do sismo, às 16h53, Zilda Arns dava uma palestra sobre os cuidados com a saúde infantil. O teto da igreja onde estava desabou; da pediatra ficaram o exemplo de dedicação e comprometimento com os desafortunados.
Impactados pela catástrofe, autoridades de diferentes países estufaram o peito para dizer que o Haiti seria reconstruído e uma “nova nação surgiria dos escombros”. Em uma reunião realizada em Nova York, nomeada “Conferência dos Doadores por um Novo Futuro do Haiti”, o então presidente Barack Obama anunciou que os Estados Unidos doariam US$ 1,15 bilhão. A União Europeia comprometeu-se com US$ 1,6 bilhão, a França, com US$ 180 milhões e a Espanha, com US$ 346 milhões. O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva também prometeu ajuda e estimou em US$ 172 milhões a quantia destinada ao país caribenho.
Apesar da catástrofe, havia um clima de esperança na comunidade internacional de que as doações reergueriam a economia haitiana e a ilha retomaria seu protagonismo. Somadas todas as promessas, o valor chegava a US$ 11 bilhões de dólares. Com o tempo, tal compromisso não se efetivou e grande par-te das ajudas nunca chegou à ilha. Segundo Ricardo Seitenfus, ex-representante da Organização dos Esta-dos Americanos (OEA) no Haiti, dos US$ 11 bilhões prometidos, apenas US$ 4,5 bilhões foram efetivamente doados. Desse montante, módicos 2,3% passaram por canais oficiais haitianos. O restante foi divido entre as 10 mil ONGs que estavam no país na ocasião.
Em janeiro de 2011, um ano após o terremoto, o chefe da missão Médicos Sem Fronteiras, no Haiti, Stefano Zanini, denunciou: “durante o último ano, ficamos ouvindo promessas e planos. O que vemos ago-ra é que essas promessas e planos não se converteram em ações. […] A situação não melhorou muito. A população no dia do terremoto só nos pedia ajuda. Hoje, eles continuam pedindo a mesma coisa”.
Em meio aos escombros, porém, um monumento aos fundadores negros do país (Toussaint L’Ouverture, Jean- Jacques Dessalines e Henri Christophe) permaneceu intacto. Estava lá, altivo e impo-nente, como um símbolo da ousadia de um povo que enfrentou as potências coloniais e pagou (aliás, ainda paga) um alto preço por isso.
Foram esses três personagens, Toussaint L’Ouverture, Jean- Jacques Dessalines e Henri Christophe, aliados aos milhões de escravizados e libertos, que em 1804 derrotaram as tropas de Napoleão Bonaparte, expulsaram os franceses da ilha, aboliram a escravidão e instauraram a primeira república do hemisfério Ocidental. Pela primeira vez na história um levante de escravizados havia vencido. E não apenas isso, a revolução haitiana instaurou o terror nos escravistas em todos os lugares onde havia escravidão, sobretudo no Sul dos Estados Unidos e no Brasil, ciosos de que o exemplo bem-sucedido dos cativos caribenhos pu-desse ser seguido por seus congêneres nessas regiões.
Logo após a independência, diferentes potências coloniais tentaram sufocar a nova república. Apesar das rivalidades entre si, França, Inglaterra e Estados Unidos aliaram forças contra o Haiti. Recusavam-se a reconhecê-lo como país independente e impuseram um criminoso embargo para asfixiar a economia do país.
Os haitianos, por sua vez, decididos a rejeitar qualquer vestígio da escravidão e deixar para trás um passado demasiadamente penoso, recusavam-se a trabalhar nas plantações e nos engenhos de açúcar. Esse impulso, somado ao bloqueio internacional, destruiu o sistema econômico da ilha.
Para se ter ideia do colapso, em 1789, o Haiti era o principal produtor de açúcar do mundo, expor-tando cerca de 50 milhões de libras em açúcar refinado e mais de 90 milhões em açúcar cristal. Em 1801, no entanto, as exportações caíram drasticamente e não chegaram a 20 mil libras em açúcar refinado e 20 milhões em açúcar cristal. Na ocasião, os franceses obrigaram os haitianos a pagar mais de 1 bilhão de dólares em troca do reconhecimento formal da independência do país. Com isso, 67% do orçamento da ilha foi destinado ao pagamento da dívida externa, cifra que só foi quitada em meados de 1947.
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Mas os ataques não pararam por aí. De 1915 até 1934, os Estados Unidos ocuparam o Haiti, confiscaram terras, exploraram o território para produzir açúcar, vetaram decisões do governo e até reescreveram a Constituição haitiana, autorizando, na ilha caribenha, a posse de terras por brancos de outras nações que quisessem adquiri-las.
A nação negra conquistara a independência em 1804, porém as grandes potências mundiais jamais ofereceram a ela oportunidades de se desenvolver livre de interferências arbitrárias. Pelo contrário, castigaram, sabotaram e ultrajaram, tudo isso com a conivência e impulsionado por uma elite haitiana parasitária e sedenta de poder.
Já no século XX, o Haiti amargou um dos períodos mais soturnos de sua história. Eleito presidente em 1957, o médico sanitarista François Duvalier instaurou uma ditadura implacável e sanguinária. Conhecido com “Papa Doc” (papai médico), o ditador permaneceu no poder durante 14 anos e garantiu a suces-são presidencial ao seu filho, “Baby Doc”. Apoiada pelos EUA que temiam o espraiamento da revolução cubana na América Latina, a família Duvalier sequestrava, torturava e assassinava dissidentes. Além disso, esses ditadores proibiram partidos de oposição, governaram por decreto e se autoproclamaram presidentes vitalícios.
A ditadura Doc ultrapassou 30 mil mortos, 15 mil desaparecidos e afundou o país na pobreza. A cleptocracia comanda pelos Duvalier durou até 1986, quando Baby Doc foi desposto e ganhou exílio na França.
Uma sucessão de golpes de Estado paralisou as instituições políticas do país. Em 2004, com a destituição do presidente Jean-Bertrand Aristide, acusado de corrupção e inúmeros malfeitos, o país mergulhou em uma guerra civil e foi ocupado pelas tropas da Minustah, uma missão de paz da ONU liderada pelo Brasil. Em um claro oportunismo travestido de ação humanitária, o Brasil cumpriu durante 13 anos um vergonhoso papel de pistoleiro de aluguel das Nações Unidas.
Denúncias de estupros; violência e corrupção cometidas pelos soldados da Minustah foram abafa-das. A mídia comercial cimentou seu alinhamento com os poderosos e construiu uma cortina de fumaça para ofuscar os desmandos das tropas no país caribenho. Sem nenhum constrangimento, disseminou imagens de soldados voluntariosos, solidários, solícitos distribuidores de alimentos cercados de crianças sorri-dentes. Mário Joseph, respeitado ativista de direitos humanos do Haiti, disparou: “Na TV, os soldados brasileiros dão comida e água. No Haiti, eles matam pessoas.”. Contudo, sua voz, assim como diversas outras que denunciavam os abusos, nunca foi ouvida.
Não bastasse a ocupação estrangeira, o Haiti passou por sucessivas crises, inclusive por um surto de cólera levado pelos soldados nepaleses da ONU dez meses após o terremoto. Milhares de pessoas foram afetadas pela doença e mais de 9 mil morreram.
Passados dez anos do terremoto, ninguém mais se lembra do Haiti. O país voltou a sua condição de invisibilidade, ignorado pelos governos e pela opinião pública. Atualmente, a ilha enfrenta um grande fluxo de emigração, 70% da população vive na miséria, com renda menor que US$ 2,4 por dia, e amarga uma grave recessão.
Invadido por diferentes nações, sempre foi negado ao Haiti e ao seu povo autodeterminação, condições de desenvolvimento sustentável e relações internacionais equânimes. Tropas foram levadas para lá, mas jamais oportunidades de aperfeiçoamento de suas potencialidades. O país sempre foi encarado como um espantalho na sala, pronto a ser vilipendiado a qualquer custo.
O Haiti é um espinho entalado na garganta da comunidade internacional. A punição pela ousadia dos escravizados rebeldes que triunfaram na revolução ainda não terminou, segue seu passo a conta-gotas, ceifando vidas e destruindo sonhos.
* Luis Gustavo Reis é professor e editor de livros didáticos”
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