Política

Aos que virão depois de nós

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(Pawel Kuczynski)

Luís Felipe Machado de Genaro*, Pragmatismo Político

Eu queria ser um sábio. Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria: Manter-se afastado dos problemas do mundo E sem medo passar o tempo que se tem para viver na terra; Seguir seu caminho sem violência, Pagar o mal com o bem, Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los. Sabedoria é isso! Mas eu não consigo agir assim. É verdade, eu vivo em tempos sombrios!

(Bertolt Brecht)

Hannah Arendt foi uma grande filósofa do século XX, apesar das inúmeras críticas – algumas muito recentes, inclusive – de movimentos libertários e progressistas a respeito de seus trabalhos e pensamento. Sua produção intelectual a marcou como uma das maiores questionadoras do século passado.

Afinal, o mal, ou aquilo que conhecemos filosoficamente como maldade (tendo em vista os pressupostos da filosofia ocidental) seria assim tão banal? Apenas Adolf Hitler, em seu púlpito maior, com o braço levantado e entre verborragias e trejeitos toscos seria o único “maldoso” daquele momento histórico tão peculiar? Ou a maldade era, simplesmente, “banal”? Não estaria ela “naturalizada” no operador de máquinas que transportou via trilhos de trem centenas de milhares para os campos de concentração, ou naquele soldado raso junto ao médico responsável, que fechava as trancas das fornalhas e das câmaras de gás?

Distantes de debater conceitos e indagações filosóficas tão acaloradas, me pego relendo “Homens em tempos sombrios”, de Arendt, (apesar de mulheres de peso, como Rosa Luxemburgo constarem em seus capítulos), e, frente ao momento vivido, não pude deixar de constatar: vivemos hoje, entre diferenças e semelhanças, em um período, ele também, sombrio.

Hannah Arendt escreve: “Os tempos sombrios, no sentido mais amplo que aqui proponho, não são em si idênticos às monstruosidades desse século [XX], que de fato constituem uma horrível novidade. Os tempos sombrios, pelo contrário, não só não são novos, como não constituem uma raridade na história”. De fato, a filósofa estava certa.

Umberto Eco, outro intelectual de peso, este mais progressista que a antecessora que mencionei, esgarçou estes tempos sombrios de forma aterrorizantemente atual – não no mês passado, em uma conferência de algum partido comunista ou socialdemocrata europeu – mas na Universidade de Columbia, em 25 de abril de 1995. Lembremos, novamente, Hannah Arendt: “os tempos sombrios não são novidade na história”. Em sua palestra sobre o “fascismo eterno”, o filósofo italiano cita os pilares básicos em que se assenta o Ur-fascismo, como denominou este mal tão banalizado no Brasil e no mundo.

Leia aqui todos os textos de Luís Felipe Machado de Genaro

1) Não pode existir um avanço do saber (cortes ou “reformulações” de bolsas de estudos em Universidades públicas não são mais novidade); 2) o irracionalismo (a proporção de inexplicáveis barbaridades anticientíficas que se escuta e lê recentemente também marcam o nosso tempo. Terraplanistas e idiotas antivacinas brotam diariamente); 3) deste irracionalismo nasce o ódio ao intelectual, pensadores e ao conhecimento em si. “A cultura passa a ser suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas”, diz Eco; 4) Não se aceita a crítica, seja ela jornalística ou intelectual (o ataque aos jornalistas com “bananas” e “palhaçadas”, para citar o mínimo, estão aí); 5) A diversidade é vista como um entrave ao poder (homossexuais, indígenas, sem-teto, negros periféricos são vistos como “intrusos”, “inimigos”); 6) Diante de uma crise econômica como a que vivemos, o fascismo escolhe grupos sociais subalternos como bode expiatório (se forem oriundos de outros países então, pior ainda. A xenofobia contra bolivianos, haitianos e venezuelanos sangram os jornais diariamente); 7) O nacionalismo e o apego aos símbolos patrióticos – todos inventados e construídos historicamente, mas isso pouco importa – também tornam-se pilares inconteste destes tempos; 8) Finalmente, e para não me alongar, pois os pilares são muitos, a aspiração à morte e o temor ao sexo.

Umberto Eco desenha Jair Messias Bolsonaro magistralmente: “Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói fascista joga com as armas, que são seu Ersatz erótico fálico: seus jogos de guerra se devem a uma invidia pênis permanente”.

Em sua pequena obra, Eco continua sua palestra como se estivesse na Universidade de São Paulo em fevereiro de 2020. Se não vivemos em tempos sombrios e perigosos, perco meu tempo redigindo tais palavras.

E o perigo está à espreita, porém, cada vez mais próximo. O autoritarismo bolsonarista caminha velozmente. As mulheres e o movimento feminista brasileiro e latino-americano no último oito de março mostraram a sua força na luta contra o fascismo e os tempos sombrios. Mas é preciso ir além.

Deixemos de nos autocensurar. Nos organizemos politicamente e acusemos a censura, o golpismo, a ofensiva reacionária e o militarismo tenebrosos que nos avizinham. Que a agonia e o medo não nos consumam como vêm fazendo até o momento. É tempo de unir, de fato e concretamente, partidos, movimentos, coletivos, sindicatos e universidades – todas as forças progressistas e libertárias – contra o barbarismo irracional que nos acomete.

*Luís Felipe Machado de Genaro é historiador, mestre em história pela UFPR e docente das Faculdades Integradas de Itararé (FAFIT)