Em pleno surto da pandemia, Bolsonaro viaja para os EUA para tratar de uma agenda adiável, não cumpre os protocolos recomendados pela OMS e traz o coronavírus ao país junto com sua comitiva. Agora tenta disfarçar incompetência com mais uma guerra de narrativas. 17 pessoas que estiveram com o presidente estão infectadas
Enquanto o mundo estava sob alerta com o rápido avanço do coronavírus, Bolsonaro, para quem tudo não passava de uma “fantasia” da mídia, achou razoável viajar aos Estados Unidos para tratar de uma agenda militar e comercial.
Essas reuniões poderiam tranquilamente ter sido adiadas ou feitas por videoconferência, ainda mais porque essa é a quarta viagem de Bolsonaro ao país em menos de 15 meses de mandato.
Mas sabemos como é importante para o bolsonarismo estreitar os laços da vassalagem. Bolsonaro precisava estar mais uma vez presente em solo americano para tirar foto ao lado do tio Trump e ganhar biscoito dele enquanto balança o rabinho de felicidade em seu resort.
Em Miami, além da escandalosa declaração sobre a fraude das eleições que venceu, o presidente brasileiro disse que o coronavírus estava “superdimensionado” e insinuou haver interesses econômicos por trás do alarmismo.
Enquanto o mundo tomava medidas drásticas como fechar fronteiras e proibir reuniões públicas com muitas pessoas, o nosso presidente convocava a população para se juntar nas ruas para atacar o Congresso e o STF.
A Secom também chegou a fazer convocação por meio do perfil oficial da Presidência, o que pode configurar como crimes de responsabilidade e improbidade administrativa.
No Brasil, as milícias virtuais bolsonaristas cumpriam seu papel trabalhando com afinco para alimentar a narrativa fantasiosa do presidente. Viralizaram nos zaps do país mensagens culpando o comunismo chinês por fabricar o alarmismo e, assim, sabotar a economia mundial.
Mas não foram apenas os milicianos virtuais que entraram na onda. Grandes expoentes do bolsonarismo também alimentaram a irresponsabilidade. Enquanto o sistema de saúde italiano estava à beira de um colapso pela falta de leitos, personalidades alinhadas ao bolsonarismo ativas na internet debochavam da preocupação.
Em 25 de janeiro, quando a epidemia estava no começo, Xico Graziano, que quase foi ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, tranquilizou a população. Segundo ele, a epidemia não passava de “invenção do jornalismo catastrófico”.
Mas a realidade dos fatos se encarregou de aniquilar a narrativa governista. Na volta dos EUA, a cúpula bolsonarista trouxe na bagagem um presentinho para o povo brasileiro: o coronavírus. O secretário de Comunicação da Presidência, Fabio Wajngarten se infectou e toda a comitiva brasileira — assim como os americanos que participaram das reuniões — permaneceram sob suspeita de contágio.
Segundo revelou o Intercept, além de Wajngarten, outras três pessoas apresentaram os sintomas ainda nos EUA, mas deixaram para fazer o teste no Brasil, infringindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde, a OMS. Ou seja, a cúpula do governo sabia da possibilidade de estar trazendo mais corona para o Brasil e não tomou nenhuma precaução.
ATUALIZAÇÃO: 17 membros da comitiva de Bolsonaro estão infectados com coronavírus
Logo que voltou, Bolsonaro continuou circulando normalmente, abraçando e apertando a mão de idosos — grupo de risco mais vulnerável ao vírus — que aparecem em frente ao Planalto. Depois que a pandemia foi declarada pela OMS, o presidente teve que tirar o pé do acelerador das alucinações. Ele apareceu em sua live usando máscara, parecendo que estava finalmente dando o braço a torcer para a realidade.
Mas, em vez de tranquilizar a população e apresentar as medidas que estão sendo tomadas pelo governo, preferiu dizer platitudes como “o que devemos fazer agora é evitar que haja explosão de pessoas infectadas”. Ajudou também a alarmar a população, dizendo que o sistema de saúde “tem limite” e que não daria conta de atender tantas pessoas. Tudo o que não se espera de um estadista em tempos de pandemia, Bolsonaro fez.
O presidente também usou o pronunciamento público para falar diretamente com a sua militância. Em um raro gesto de prudência, Bolsonaro desconvocou a manifestação golpista que ele jurou jamais ter convocado. Os organizadores da manifestação, claro, seguiram o grande líder e cancelaram, mas a militância bolsonarista nas redes já estava contaminada pela ideia de que o corona seria uma “fantasia”.
No Twitter, a tag #DesculpeJairMasEuVou passou a ser a mais comentada. Na manhã seguinte à apresentação da live, o mundo inteiro noticiou que Bolsonaro também estava infectado, mas a informação era falsa. Eduardo Bolsonaro chegou a confirmar para a Fox News que o primeiro exame do pai havia dado positivo.
Como se sabe, os governistas costumam jogar essas cascas de banana para a imprensa pisar e depois acusá-la de mentir. Ao se confirmar que não estava infectado, Bolsonaro reagiu assim, feliz com mais uma batalha de narrativa vencida.
Para Olavo de Carvalho, farol intelectual do bolsonarismo, o surto do novo coronavírus não passa de uma trama capitaneada por Bill Gates, que teria um plano maquiavélico para reduzir a população mundial. Essa alucinação integra um velho boato disseminado pelos movimentos antivacina, tradicionalmente alinhados à extrema direita em todo o mundo. Para eles, o dono da Microsoft estaria patrocinando vacinas que esterilizam a população.
O olavista Bernardo Küster, que é um dos youtubers que foi recomendado pelo presidente no início do mandato, afirmou no jornal de Olavo que a pandemia de coronavírus é uma grande farsa criada para atender grupos de poder. A ONU, a CNN, a Globo, as empresas de vacina e o establishment internacional estariam comandando “um experimento psicológico de manipulação em escala global, uma gigantesca fraude para manipular economias, suprimir dissidências e beneficiar grupos de poder”. É esse o nível de lisergia que norteia as decisões daqueles que nos governam.
O fato é que, mesmo diante dessas sucessivas irresponsabilidades do governo, o brasileiro pode respirar aliviado por ter escapado de coisa pior. Sim, por sorte, a Lei de Tiririca, “pior que tá não fica”, foi contrariada. Luiz Henrique Mandetta tem muitos problemas, entre eles o de ser um ministro da Saúde próximo aos planos de saúde, mas não é um olavista dado a conspirações.
Diferentemente de quase todos os outros ministérios bolsonaristas, o da Saúde não foi completamente desmantelado. Mandetta é médico, tem um perfil mais discreto e não se mete em seguidas polêmicas como os demais ministros. Até agora, apesar do deboche do presidente diante da pandemia, o ministério tem tomado as medidas necessárias para enfrentá-la. Não é difícil imaginar o tamanho do colapso que estaríamos vivendo agora se um olavista feito um Weintraub da vida, que destruiu o corpo técnico do MEC em nome de uma caçada aos comunistas, estivesse à frente da Saúde. E olha que não corremos esse risco por muito pouco.
Após a eleição, Henrique Prata, um fazendeiro que administra o hospital do Câncer de Barretos, era um dos cotados para assumir a pasta. À época, Prata se disse alinhado ao bolsonarismo e afirmou que estava “preparado por Deus” para “virar o ministério do avesso”. Disse ainda que o único livro que lê “todos os dias é a bíblia”. A gente já sabe onde essa conversa termina.
O fato é que nós somos governados por um bando de gente fora da casinha. Decisões importantes para a nação são tomadas nas coxas, com base em boatos e ideias estapafúrdias que circulam em correntes de WhatsApp. Em pleno surto da pandemia, Bolsonaro viaja, não cumpre os protocolos recomendados pela OMS — claro, é considerada uma entidade comunista — e traz o coronavírus ao país junto com sua comitiva. O bolsonarismo agora tenta disfarçar a incompetência com que trataram o caso investindo ainda mais na guerra de narrativas. Não é para menos: os últimos anos mostram que o método da mentira tem triunfado. Como bem disse Ciro Gomes, o Brasil é um Boeing pilotado por um chimpanzé.