Saúde

Médico com coronavírus diz que “Bolsonaro propõe sacrifício em massa”

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Jovem médico infectado no próprio hospital enquanto atendia pacientes diz que Jair Bolsonaro "propõe sacrifício em massa da população". Isolado, o profissional tem se dedicado aos estudos para entender melhor como poderá ser útil quando retornar ao trabalho

David Kern (divulgação)

Bruna Alves, Viver Bem

O médico David Kern, 27, atua como residente de cirurgia-geral do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Ele acabou sendo infectado pelo vírus no próprio hospital e agora está isolado em casa.

“Estava no HU (Hospital Universitário da USP), é lá que eu estava fazendo meu último estágio. Na sexta-feira (20) à tarde, comecei a sentir um pouco de coriza. Achei que pudesse ser rinite, mas pelo bem e pelo mal, como sou exposto e moro com meus pais, resolvi já começar o isolamento. Daí na sexta, um pouquinho mais tarde, comecei com uma tosse seca, e no sábado tive um pouco de falta de ar, mas muito pouco, nada relevante, e dor de cabeça —que era o que mais estava me incomodando”, disse, em entrevista ao site ‘Viver Bem’.

O que me chamou atenção é que sábado também parei de sentir o cheiro das coisas. Domingo já estava melhor e segunda estava praticamente assintomático, com a exceção de não conseguir cheirar nada”.

Na segunda feira (23), o médico fez o teste e o resultado já saiu no dia seguinte, confirmando a covid-19, então, ele apenas continuou o isolamento.

“Graças a Deus, tenho uma família que está cuidando de mim, mas fico só no meu quarto, não saio. Eles trazem a comida para eu não correr o risco de contaminar a cozinha, e a única coisa que faço depois que como é colocar a minha máscara, levar as minhas coisas para a pia e lavar a minha louça e a minha roupa. A minha maior preocupação, pessoalmente, era infectar a minha família”.

Devido aos cuidados diários que têm, até hoje, ninguém de sua família apresentou qualquer sintoma. Isso porque, segundo ele, mesmo sem ter certeza da doença, ele evitou qualquer tipo de contato e optou pelo isolamento social completo.

Isolamento e estudo

Embora fique apenas no próprio quarto, ele não fica o dia inteiro sem fazer nada, ao contrário, esse período tem sido bastante proveitoso. Para se distrair durante o dia em sua nova rotina, ele estuda cirurgias, que é sua especialidade, lê livros de ficção e assiste Netflix.

Além disso, o jovem médico estipulou períodos para se dedicar ao estudo da pandemia e se atualizar das notícias.

“De manhã, leio artigos para tentar entender melhor como vou poder ser útil quando voltar ao trabalho. Estou lendo sobre cuidados de UTI, assistindo videoaulas. E à noite eu vejo as notícias do dia, como está a situação do país e do mundo”.

Inicialmente, quando os primeiros sintomas apareceram, ele tinha feito um plantão diurno e noturno com um médico que também havia testado positivo para o coronavírus, porém, ele não acredita que tenha sido infectado pelo colega, porque eles não tiveram muito contato.

De qualquer forma, não é possível saber como ele foi infectado, principalmente por estar em um hospital.

Kern conta que não estava usando máscara o tempo todo na última semana em que esteve trabalhando porque, até então, não havia essa recomendação.

“Não tinha indicação dos EPIs porque eu não estava entrando em contato. Enquanto estava no HU, fiquei na enfermaria, e na enfermaria não tinha nenhum paciente confirmado e a gente estava avaliando todos os casos”, explica o médico, mas ele afirma que no pronto-socorro do Hospital Universitário todos os médicos já haviam sido notificados para usarem a máscara, e essa ordem estava sendo seguida rigorosamente pelos profissionais.

Gripezinha?

Na última semana, o presidente Jair Bolsonaro fez uma declaração em rede nacional, em que afirmou que a covid-19 é apenas uma gripezinha, um resfriadinho. Questionado sobre o pronunciamento, o médico discorda veementemente.

“Nitidamente, se tem uma coisa que a gente tem visto, estudado e percebido nos últimos meses, é que não é uma gripezinha. Inclusive, cada vez mais a gente está vendo jovens precisando de leitos de UTI, crianças precisando de UTI, e mesmo jovens, fora do grupo de risco, morrendo. Mesmo uma pessoa completamente saudável, não significa que ela não vai desenvolver uma forma grave da doença. A gente ainda não sabe por que algumas pessoas desenvolvem e outras não, mas isso não é uma gripezinha. Isso é no mínimo uma pneumonia viral”, explica.

Contudo, ele diz que é muito cedo para fazer qualquer tipo de afirmação, já que os estudos ainda são preliminares. No entanto, o que se sabe é que ao menos 20% das pessoas infectadas necessitam de atendimento hospitalar.

“E é meio bizarro porque os sintomas vão desde assintomáticos até a pessoa literalmente ser intubada e morrer dentro de poucos dias. Se for ver todos os dados, a gente vai ver que é uma coisa infinitamente mais infecciosa e muito mais letal do que o H1N1”, diz.

Segundo ele, se as pessoas voltarem a rotina normal, seja para trabalhar ou estudar, uma parte significativa dessas pessoas vai precisar de atendimento hospitalar e de UTI, até mesmo os jovens sem comorbidade.

“A gente não consegue categorizar adequadamente e cegamente os grupos de risco. É um perigo gigantesco o que o nosso presidente faz quando acha que consegue categorizar esse grupo de risco, que ele sabe quem tem risco e quem não tem”, avalia.

“Quando a gente coloca todo mundo de volta na rua, o vírus se espalha ainda mais rápido e mais pessoas morrem. Então o que ele está propondo, na verdade, é um sacrifício em massa da população.”

Em concordância com os órgãos de saúde do Brasil e do mundo, o jovem médico afirma que é melhor pecar pelo excesso do que pela falta.

“É importante ficar em casa, pelo amor de Deus, ignorar as coisas absurdas que o presidente está falando, isso não é uma histeria generalizada, isso é uma pandemia — não é brincadeira”, enfatiza, alegando que “é infinitamente melhor daqui a alguns meses a gente poder falar: ‘nossa, olha como fomos exagerados’, do que a gente não fazer tudo que for possível e daqui uns meses olhar para trás e falar: ‘meu Deus, olha quanta gente morreu'”, finaliza.

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