Djefferson Amadeus*, Pragmatismo Político
A pergunta da pessoa abandonada na rua (e não morador de rua – explico no final o porquê) é um “tapa na cara” de todos nós, brasileiros e brasileiras. E ela explica por que o coração do meu querido irmão Thiago Fabres parou de bater. A propósito, o mesmo ou algo parecido deveria acontecer com qualquer um de nós que se deparasse com a referida indagação, afinal, ela joga na nossa cara que há negros e pobres que morrerão sem saber por que morreram e, pasmem, por uma doença que chegou ao Brasil trazida pelas elites, de avião.
A gente aguenta isso porque não temos a mesma dignidade que o Thiago Fabres tinha. Sofremos de “normalpatia”. A prova da nossa “normalpatia” se confirma com a nossa reação diante da notícia de que a mãe do porteiro, que morreu vítima do corona vírus, sequer teve o direito de enterrar o seu filho. E não pode fazê-lo porque, segundo a reportagem, fora enganada pelo hospital.
O sobrinho somente soube a causa da morte do seu tio no enterro, quando viu o caixão… lacrado. Foi lá para ver seu tio, pela última vez, mas não pode. Por duas vezes, repito, por duas vezes, impediram que a família pudesse se despedir do Manoel Messias Freitas Filho, porteiro de 62 anos, morto pelo corona vírus.
A sua mãe, com 82 anos, humilde, externou exatamente as palavras que se seguem: “Eu não me conformo de perder meu filho em um problema tão grave e de não ter participado sequer do enterro. Eu só espero que as pessoas acreditem — esse problema existe e está aqui”.
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Não dá nem vontade de continuar a escrever. Escrever o quê? Enfim… Meu pedido de desculpas à senhora, à sua família e ao seu filho, Manoel Messias Freitas Filho.
Aqui algo que passou despercebido para todos, mas não a mim: o modo como trataram o primeiro morto, no Brasil, pelo corona vírus. Morreu como um ninguém. Sequer teve o direito, a todos conferido, de ter toda a sua família no velório. A sua irmã, Maria das Graças, de 53 anos, era uma das poucas que estava no enterro.
Mas ela somente soube da causa da morte do seu irmão depois, já em casa, pela imprensa: “Cheguei em casa depois que enterrei meu irmão e foi na televisão que vi a causa da morte. Falta de respeito e humanidade com a gente.”
Um dos textos mais difíceis que já escrevi. Aliás, ultimamente tem sido assim, como fora nos artigos que escrevi sobre a empregada doméstica que estava trabalhando na casa do patrão e da patroa, ambos infectados com o corona vírus. Soube que uma empregada doméstica morreu infectada pelo corona vírus, trabalhando na casa da patroa que transmitiu a ela o vírus.
Quem trouxe o vírus está vivo. E quem estava cuidando de quem trouxe o vírus morreu. Ou seja: morreu a empregada doméstica, morreu o porteiro, enfim, morreu a classe trabalhadora que carrega este país nas costas, maioria negra e pobre.
Tratados como um ninguém. Basta lembrar que, no caso da empregada doméstica, a reportagem dizia que o casal infectado estava “isolado” com ela. Isolado porque ela, empregada doméstica, é considerado um ninguém, daí poder dividir o mesmo espaço com seus patrões, infectados, enquanto o diálogo com o médico se dava apenas por telefone.
O mesmo tratamento (de um ninguém) foi dado ao porteiro. Caixão lacrado, sem sua mãe no enterro. E a irmã, que estava no enterro, somente soube a causa da morte do seu irmão quando chegou em casa, pela televisão. Tratados como um ninguém.
Assim como a pessoa abandonada na rua que perguntou por que as pessoas estão usando máscaras… Muitas destas pessoas, infelizmente, estão na posição de esquecidos que, segundo Luis Alberto Warat, estaria abaixo do excluído, porque o excluído, para ser excluído, pelo menos precisa ser lembrado. Já o esquecido estaria abaixo do excluído, porque ele nem é lembrado. É tratado como ninguém e ainda é esquecido.
Por isso, em meio à pandemia, ele sequer sabe por que há pessoas com máscaras. Porque, esquecidos, não há quem os alerte. Podem morrer! E sem saber o porquê.
Triste, muito triste. Meu pedido de desculpas a vocês também, que não são moradores de rua, porque ninguém pode morar onde se é passagem, como disse José Vieira Rocha Jr. Quem mora não pode fixar-se num lugar que, como a rua, é passagem. Ou é rua ou é moradia.
A expressão morador de rua, portanto, é uma forma que, inconscientemente, diria Freud, nós encontramos para lidar com a nossa canalhice em não admitir que nós, enquanto sociedade, convivemos com pessoas abandonadas; e nada fazemos! Daí dizermos que eles moram na rua, porque isso ameniza, fazendo-nos crer que estão ali porque optaram! Mais uma vez, desculpem pela nossa covardia e canalhice.
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*Djefferson Amadeus é advogado, mestre em direito e hermenêutica filosófica pela Unesa, pós-graduado em filosofia pela PUC-Rio, pós-graduado em processo penal pela ABDCONS-RJ, membro da FEJUNN e do Movimento Negro Unificado (MNU).
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