Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Segundo os doutores, já ocorreram quatro extinções durante o curto período cósmico de vida na terra. 99% de tudo que já viveu por aqui desapareceram e hoje apenas um por cento dessa exuberância de vida ainda persiste.
Em meu tempo de vida, muitas foram as ameaças de extinção que testemunhei. Orson Wells fez um programa de rádio há 75 anos que descrevia com viva emoção a invasão da terra por extraterrestes. As pessoas saíram às ruas enlouquecidas diante do inevitável. Depois, envergonhadas, retornaram aos seus lares, cabisbaixas. Wells aprendeu com Goebbels, ministro da propaganda nazista e o inventor das comunicações de massas a gerir informações, inaugurando o tempo dos alardes.
Na Baía dos Porcos, na Cuba pós-revolucionária, por pouco os mísseis atômicos não voam pra todo lado acabando com tudo uma vez mais. Aliás, muitas foram as ocasiões limite em que algum general enlouquecido apertasse o botão do juízo final.
Quase fomos extintos com o ebola, esvaindo em sangue por todos os poros. E em muitas outras cepas de vírus o mundo quase acabou. Mais recentemente, quase que a medida do pau do presidente americano com o da Coreia do Norte terminou em tragédia para a raça humana.
As cidades americanas têm um dispositivo de alarme que anuncia, dia a dia, os perigos de ataques terroristas muçulmanos: chamam de defcons.
Estamos aguardando a quinta extinção. Aparentemente ansiosos diante da precariedade de uma vida miserável.
Agora estamos diante de mais uma possibilidade. Um vírus dos coroas ameaça nossa permanência por aqui, nesse lindo vale de exuberância e delícias que deus fez para nosso deleite e para o dele, certamente.
Desde o aparecimento das sociedades complexas foi importante organizar a bagunça. Se o caos é imprevisibilidade, a ordem é tornar tudo o mais previsível possível.
Uma tribo, uma comunidade, uma comunidade de sentido em que sabemos até o humor de nossos companheiros de jornada é algo simples de se mover e há milhares de anos se mostrou bastante eficiente como modo de acomodar os humanos e seus companheiros de vida. Mas uma sociedade complexa é outra história.
Vou explicar em poucas palavras o que é uma sociedade complexa. É aquela que os gestores dos destinos de todos não partilham da ilusão geral e controlam a ideologia, ou seja, sabem que a ideologia é uma farsa, uma estratégia de dominação.
Nesse sentido, só existiu uma sociedade assim. Nascida há mais de 500 anos numa cidade estado italiana chamada Florença e dali se irradiou em lutas ininterruptas para o mundo todo na forma de estado nação e de colonização.
Eu chamo esse fenômeno de sistema de dominação eurocêntrico. Uma língua comum, uma história pátria, uma geografia, a educação, a ciência iluminista, tudo atributo dessa forma peculiar de dominação. Uma visão unificada da realidade.
Esse sistema vetorial tem características de envolvimento e de desenvolvimento. É um sistema não linear, embora se pareça com um. Tem etapas precisas para se efetivar. É preciso dominar, no sentido da ideologia, para depois explorar, no sentido da violência, para fazer funcionar um mecanismo de produção, em que as pessoas exaltem a dignidade do trabalho e, finalmente, de reprodução, que cada um transmita esses valores.
O neoliberalismo é a etapa de reprodução, em que cada um faz o sistema funcionar sem a necessidade de uma ordem externa, sem que a heteronomia precise se manifestar. É o momento histórico da autonomia desse sistema.
Nesse sentido, o lucro é só um dos derivados desse sistema, mas não é o principal. A função primordial é transformar o humano numa coisa. E isso é bem difícil de conseguir, pois o humano tem uma tendência a escapar desses determinismos. Em seu íntimo, quer ser livre, quer poder escolher outras formas de se relacionar, quer amar incondicionalmente. É por isso que o sistema deve funcionar com alto nível de criatividade o tempo todo.
Se você me perguntar se existe alguns privilegiados que controlam o sistema, ou seja, se estou a falar de uma teoria da conspiração, a resposta é não.
Há bastante tempo esse sistema assumiu uma forma de ver o mundo, de manifestar-se em pensamentos. É a racionalidade sua forma autônoma, o que faz com que ela funcione por contágio. E qualquer um que divirja dela é louco, tolo ou imbecil. Como as pessoas se preocupam com o que pensam dela, ou porque gostam da aceitação generalizada, manifestam apenas aquilo que os outros querem ouvir ou ler.
A racionalidade é o vírus que transporta para todos que entram em contato com ele a forma acabada de como pensar o mundo, do que é certo, do que é direito. Todos nós sabemos tudo isso, certo? Temos todas as certezas, sabemos de todas as verdades universais. Temos todas as garantias.
A fase neoliberal é o da reprodução funcional. É um momento de extrema desigualdade e isso o torna um período particularmente interessante, pois sua diretriz exige que o ser humano se explore sozinho. Todas as garantias foram extintas.
Esse tipo de sistema precisa sempre de um suporte ou outro pra funcionar e o medo é seu corolário. O medo é um aditivo eficiente porque projeta para o futuro a ruína, a ameaça, o perigo, o caos. Se você retira do presente a vida e lança no futuro suas diretrizes, então não há o que fazer, a não ser temer e se submeter, mesmo voluntariamente.
Estamos, por outro lado, no tempo veloz das interações comunicativas, que percorrem o mundo mais rápido que qualquer vírus criando perfis bem funcionais.
Um perfil funcional é aquele que responde aos apelos midiáticos rapidamente. Para que isso realmente seja rápido, a forma pensamento exigida é a dicotomia. É o concordo discordo, o pensamento linear, imediatista, de oposição. Isso faz com que o tempo da resposta seja responsável pela formação de comportamentos estandardizados.
Claro que num tempo de democracia e de certa forma de autonomia, o comportamento estandardizado é um desafio imenso, pois cada um imagina que é único nesse tempo histórico, único em seu perfil. Por isso a dicotomia é importante, pois restringe ao mínimo as possibilidades do pensar.
Entenda que isso acontece sozinho, simplesmente ancorado na racionalidade. Então, quem determina o que vai ocorrer desaparece nas teias racionais e o disparo do movimento silencia no ouvido comum.
Já precisamos da igreja pra nos dizer o que era o certo; já precisamos das fábricas pra nos submeter; já precisamos da burocracia para que nosso poder parecesse real. Agora temos que agir por nossa conta e risco. Nós geramos o sistema, por meio dos empoderamentos. As corporações gigantescas carecem de que cada célula dela atue fora de uma programação limitante. Carecem de criatividade, de ousadia, da emergência que sobe na escala empresarial contagiando tudo até o topo. É uma instituição fascista em todos os sentidos.
Daí que o fascismo, esse jeito de acreditar que suas verdades são as verdades que todos devem aceitar, é o corolário do tempo de reprodução sistêmica.
Agora podemos retomar nosso apego às extinções e às pulsões de morte. Um sistema como esse, que exige todo o tempo presente doado em troca de futuro, precisa sempre inocular nos tempos e espaços vitais artefatos de exaustão.
Os artefatos de exaustão têm como objetivo exaltar a solidariedade, a bondade, o drama que no coletivo faz emergir o melhor de nós mesmos. São de exaustão pois sugerem que o limite da vida está próximo. É uma contabilidade finalista, o apocalipse logo ali.
Pode parecer uma contradição que o sistema que vive da morte careça de exibições fatalistas, mas é dessa forma que ele se alimenta melhor, do melhor de cada um, da boa intenção e da generosidade diante da tragédia. Quando passa o perigo mortal, podemos retornar refeitos aos nossos compromissos com o amanhã, salvo por nossa humana intervenção.
Diante de nós, um vírus mortal se expande. Está bem longe de ser como a tuberculose, que mata 4.500 pessoas todos os dias, três a cada segundo, mas que não tem o peso social das novas vítimas do corona.
Tampouco nos importamos com as 500 mil mortes anuais decorrentes do mundo do trabalho, só no Brasil. Isso é irrelevante diante da ameaça inovadora do vírus chinês.
No mundo dos fakes, nesse mundo de perfis criado por Goebbels e gerenciado por cada um de nós, não há mais verdades, só sombras fugidias de espectros, dados minerais, algoritmos de uma nebulosa que se expande infinitamente pra dentro e pra fora.
Ora, diante disso, a resposta sempre é previsível, pois a forma pensamento é linear.
Eu já vivi muitas extinções numa vida que nem é tão longa assim. Quase desaparecemos várias vezes nos últimos 60 anos. Não dou ouvidos a bobagens como essas de agora.
Agora encontro barreiras nas estradas, cidades enclausuradas, pessoas com máscaras na boca e álcool gel na algibeira. Um olhar de terror vem junto, uma compreensão de como devemos evitar o contágio, parar a trajetória viral. Logo menos alguém vai voltar pra rua sem essas bugigangas inúteis, e outro depois desse, e as barreiras vão se dissolver como se nunca tivessem ali existido. E então, como os passageiros enganados por Orson Wells timidamente se recolheram ao cotidiano muito menos dramático de então, vão esquecer essa bobagem e voltar a suas vidas adictas ao sistema mais injusto e desigual da história da humanidade, mornas e conformadas que o mundo ainda é um lugar que gostam de viver.
Não admito que o medo faça parte da minha vida, sob nenhuma circunstância. O medo, o apego, o futuro, todas as características do desenvolvimento, do separar os humanos de sua natureza gregária, nada disso deixo que me corrompa, nada em nome do futuro.
Como vivo no presente, no tempo em que posso gozar cotidianamente, inundando meu organismo de delícias como os hormônios da felicidade que o orgasmo oferece, como vivo num movimento de aceitação plena de tudo que a vida me oferece, de bom ou de ruim, como vivo contemplando serenamente a vida, não me importo com bobagens, com notícias de que preciso me isolar do mundo para os benefícios gerais. Gosto de abraçar, de apertar a mão, de olhar nos olhos, de beijar na boca. Nenhuma racionalidade me fará ser o que não quero ser, abraço a vida sem constrangimentos, pois a quinta extinção está logo aí e não tenho tempo a perder com quarentenas.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
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