Economia

Uma carta para o “Zero três”, mas destinada aos ruralistas

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(Imagem: Adriano Machado | Reuters)

Daniel Alem*, Pragmatismo Político

Em recente carta aberta ao deputado Eduardo Bolsonaro, o Cônsul-Geral da República Popular da China no Rio de Janeiro, Li Yang, além de rebater as acusações não confirmadas de que seu país seria culpado pela atual pandemia, aproveitou para indicar que os Estados Unidos podem ter sido a fonte da Covid-19, já que, como disse o cônsul, o próprio “diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos já reconheceu que, durante a chamada “epidemia de gripe” nos Estados Unidos, no ano passado, algumas pessoas teriam morrido por Covid-19”.

Apesar disso, ainda segundo o representante chinês, não seria pertinente chamar a Covid-19 de “vírus norte-americano”. Tais advertências foram feitas sem que se economizassem críticas ao comportamento pouco racional do deputado federal, conhecido pela alcunha de “zero três”, e que também é filho do presidente Bolsonaro.

Saiba mais: Embaixada da China diz que Eduardo Bolsonaro “contraiu vírus mental”

É sabido que na diplomacia internacional os detalhes, muitas vezes, são o que há de mais importante e significativo. Nessa área, muito é dito sem que se precise ser falado e as táticas e artimanhas permeiam cada uma das ações e iniciativas adotadas. A carta divulgada pelo órgão da República Popular da China não foge a essas características. Tendo como motivação os irresponsáveis comentários proferidos pelo filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, o texto parece mirar mais nos setores econômicos interessados na manutenção da relação comercial com a China do que no parlamentar em questão. É interessante notar, como foi devidamente registrado pelo cônsul, que “por dois anos consecutivos, dois terços do superávit do comércio exterior do Brasil vieram da China, o seu maior parceiro comercial!”.

De fato, China, Hong Kong e Macau foram responsáveis por US$ 65,389 bilhões do total das exportações brasileiras em 2019, sendo seguida, mas de muito longe, pelos Estados Unidos (US$ 29,556 bilhões). A despeito da redução em US$ 6,5 bilhões da participação da China no total das exportações brasileiras em 2019, se comparado a 2018, o país continua sendo o parceiro mais importante do Brasil quando se trata de comércio internacional.

Em março, durante outra polêmica envolvendo o governo chinês e o deputado Eduardo Bolsonaro, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) formada por quase 300 parlamentares do Congresso Nacional enviou uma carta à Embaixada da China buscando reforçar a relação bilateral entre o Brasil e o país asiático afirmando que “repudia ilações e ataques contra um dos parceiros mais importantes da última década para nosso desenvolvimento”, ao mesmo tempo em que o presidente da FPA disse que “não será tolerado nenhum prejuízo à esta relação bilateral e que estaremos prontos para fazer oposição a qualquer ameaça ao bom relacionamento entre o Brasil e a China, sobretudo numa perspectiva de reaquecimento econômico. O momento pede união global para superação de uma mazela sem nacionalidade que aflige toda a humanidade”.

Portanto, os ruralistas mostraram disposição suficiente para enfrentar quem quer que deseje melindrar os bons negócios gerados na relação Brasil-China. Mesmo levando isso em conta, o famigerado “zero três” voltou a mirar seus impropérios para o governo chinês. Nem mesmo a carta aberta dirigida ao deputado fez com que ele contivesse seu ímpeto infantil, visto que, no dia seguinte à publicação da carta, ele, em parceria com o ministro brasileiro da educação, em live numa rede social, aumentou a carga de acusações dirigidas à República Popular da China.

Dessa vez, contudo, não parece que os líderes chineses ficarão só nos apelos de desculpas ou na equidistância vista, por exemplo, no caso do confisco/compra pelos Estados Unidos dos materiais hospitalares que já estavam a caminho do Brasil. Tudo indica que deixarão a típica prudência para se movimentar de maneira mais agressiva, como ficou evidenciado no seguinte trecho da carta aberta: “A China nunca quis e nem quer criar inimizades com nenhum país. No entanto, se algum país insistir em ser inimigo da China, nós seremos o seu inimigo mais qualificado!”.

Neste sentido, enquanto no Brasil as incisivas frases da carta do cônsul ecoavam nos meios políticos e empresariais, na China, um diretor do ministério chinês da agricultura, em uma coletiva de imprensa sobre “segurança e suprimento alimentar“, anunciava que aumentaria a importação da soja produzida nos Estados Unidos. Assim, o governo chinês “mata dois coelhos com uma cajadada”: coloca em andamento o acordo comercial sino-americano (ao buscar diminuir seu superávit comercial com os EUA), ao passo que empurra os ruralistas para a oposição ao governo Bolsonaro, o qual vem se alinhando acriticamente aos Estados Unidos.

O governo chinês conhece as boas cartas que tem em mãos para permitir ser derrotado tolamente na disputa que vem travando com os Estados Unidos ou naquela que o governo brasileiro teima em estabelecer com ele. Cabe aos brasileiros, em geral, e aos ruralistas, em particular, refletir sobre os ganhos que seriam obtidos com um conflito diplomático criado exclusivamente por uma facção do governo federal que têm suas ações restritas às redes sociais, mas que têm potencial para destruir uma relação que até poucos anos era importante na busca dos interesses brasileiros (haja vista a criação dos BRICS).

No momento em que a humanidade se defronta com a pior crise sanitária desde a gripe espanhola (aquela que poderia ser chamada de americana) e que o sistema de saúde brasileiro corre risco de entrar em colapso, não parece razoável criar confusão com o único país do mundo capaz de oferecer os equipamentos e materiais hospitalares que tanto a saúde dos brasileiros precisa.

É, parece que o cônsul chinês, ao dirigir sua carta aos ruralistas (o zero três parece incapaz de entender), nutre certa esperança de que a facção ideológica do governo seja freada pelo pragmatismo e pela segurança dos negócios, até porque o risco de milhares de mortes no território brasileiro não parece sensibilizar esse governo.

*Daniel Alem é Economista, mestre (UFBA), doutorando (UERJ).

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