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Constituição e história mostram que Ramagem não poderia assumir a PF

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STF suspendeu nomeação do amigo de Carlos Bolsonaro para o comando da Polícia Federal. "PF não é órgão de inteligência da Presidência", disse Moraes. Constituição e história recente mostram que Ramagem, de fato, não poderia assumir o cargo. Entenda

Bolsonaro e Ramagem Valter (Campanato / Agência Brasil)

O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes suspendeu hoje a nomeação de Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal. Ramagem é amigo íntimo de Carlos Bolsonaro e foi escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para assumir o cargo.

A decisão de Bolsonaro de mudar o comando da PF, na semana passada, culminou com o pedido de demissão do ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Ao deixar o governo, Moro disse que o presidente queria interferir na Polícia Federal. Em sua decisão, Moraes diz que a PF não é “órgão de inteligência da Presidência da República”.

Ao justificar a decisão de barrar a posse de Ramagem, ele lembra que há um inquérito em curso para investigar as acusações de Moro contra Bolsonaro. Moraes chega a mencionar a possível “irreparabilidade do dano” caso Ramagem assuma a PF neste momento, durante a apuração dos fatos relatados pelo ex-ministro.

Moraes também lembra que Bolsonaro confirmou a fala de Moro sobre interferência na PF. “Essas alegações foram confirmadas, no mesmo dia [24 de abril], pelo próprio presidente da República, também em entrevista coletiva, ao afirmar que, por não possuir informações da Polícia Federal, precisaria ‘todo dia ter um relatório do que aconteceu, em especial nas últimas vinte e quatro horas’.”

Para Moraes, “apresenta-se viável a ocorrência de desvio de finalidade do ato presidencial de nomeação do diretor da Polícia Federal, em inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”.

O ministro diz que “o chefe do Poder Executivo deve respeito às hipóteses legais e moralmente admissíveis”. “Pois, por óbvio, em um sistema republicano não existe poder absoluto ou ilimitado, porque seria a negativa do próprio Estado de Direito.”

Moraes salienta que não cabe ao Poder Judiciário “moldar subjetivamente a Administração Pública”. Mas ele lembra que “a finalidade da revisão judicial é impedir atos incompatíveis com a ordem constitucional, inclusive no tocante às nomeações para cargos públicos”.

Na avaliação do ministro, o STF “tem o dever de analisar se determinada nomeação, no exercício do poder discricionário do Presidente da República, está vinculada ao império constitucional”.

Há três dias, irritado com os questionamentos sobre a proximidade de Ramagem com seu filho, Bolsonaro chegou a responder uma seguidora nas redes sociais que o questionou sobre o tema: “E daí? Antes de conhecer meus filhos eu conheci o Ramagem. Por isso, deve ser vetado? Devo escolher alguém amigo de quem?”.

Constituição e história recente

A nomeação de Ramagem apareceu no Diário Oficial da União nesta terça-feira (28). Um dia antes, na segunda (27), o jornalista Reinaldo Azevedo escreveu uma coluna que explicava a ilegalidade da nomeação do amigo de Carlos Bolsonaro. Os argumentos do jornalista foram usados, inclusive, no despacho de Alexandre de Moraes.

Leia o texto de Azevedo:

Vamos tentar pôr um pouco de ordem na confusão. De Zero a dez, qual a possibilidade de a Justiça reverter a demissão de Maurício Valeixo do cargo de diretor-geral da Polícia Federal? Resposta: zero. Qual a possibilidade de a Justiça impedir a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo? Cinco. Dado o critério empregado pelo ministro Gilmar Mendes para impedir a posse de Lula como chefe da Casa Civil de Dilma Roussef em março de 2016, a resposta deveria ser esta: dez! Não custa lembrar: uma ação duplamente ilegal de Sergio Moro, que está no centro da atual crise, concorreu para aquela decisão. Vamos explicar tudo.

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) ingressou com ação popular na 22ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal com objetivo de devolver Valeixo ao cargo. Duvido que este topasse ainda que fosse possível. Mas não é. O Artigo 84 da Constituição, que traz as atribuições exclusivas do presidente, não inclui, é fato, a nomeação ou demissão do titular da PF, mas a Lei 9.266 sim. A Lei 13.047 lhe acrescentou o Artigo 2º C, que define: “O cargo de Diretor-Geral, nomeado pelo Presidente da República, é privativo de delegado de Polícia Federal integrante da classe especial.”

Pouco importa a razão, Bolsonaro não é obrigado por nenhuma determinação legal a manter Valeixo no cargo porque, por óbvio, nunca foi obrigado a nomeá-lo. Já a escolha de Ramagem é coisa bem mais complicada. E, agora sim, é preciso voltar às duas liminares concedidas por Mendes a Mandados de Segurança impetrados, respectivamente, por PPS e PSDB para impedir, então, a posse de Lula. As íntegras das duas decisões estão aqui e aqui.

Vamos lá. O ministro reconheceu, então, que o Artigo 84 da Constituição confere ao presidente autonomia para nomear ministros, mas lembrou: “o ato que visa o preenchimento de tal cargo deve passar pelo crivo dos princípios constitucionais, mais notadamente os da moralidade e da impessoalidade”. Estava citando o caput do Artigo 37: “A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade”.

ILÍCITOS ATÍPICOS

Mendes lembrou, então, o conceito de “ilícitos atípicos”. O que é isso? Ele explica nas duas liminares, citando Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero: “Os ilícitos atípicos são ações que, prima facie, estão permitidas por uma regra, mas que, uma vez consideradas todas as circunstâncias, devem considerar-se proibidas”. A sua expressão conhecida na doutrina brasileira se revela por meio do “abuso de direito, da fraude à lei e do desvio de finalidade/poder”.

Lembro rapidamente: o então juiz Sergio Moro divulgou, de modo ilegal, gravação também ilegal de conversa entre Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva em que a presidente comunicava ao líder petista que um funcionário iria lhe levar o termo de posse para que fosse usado “em caso de necessidade”. Como havia o temor de que Sergio Moro decretasse a qualquer momento a prisão preventiva do ex-presidente, entendeu-se que a antecipação do termo de posse buscava impedir tal ação, razão por que, então, a nomeação não atenderia ao Artigo 37 da Constituição, mas sim a uma tentativa de preservar o petista de uma decisão judicial.

MANIPULAÇÃO DE MORO

Diálogos revelados pelo site The Intercept Brasil e pela Folha revelaram que Moro fez uma divulgação seletiva — e, pois, política — daquela conversa. Omitiu outros diálogos de Lula com aliados que deixavam claro que o objetivo da nomeação era tentar recompor a base política de Dilma, o que é legítimo. Erro de Mendes? Ora, ele decidiu segundo o que havia se tornado público. Não tinha como adivinhar que Moro, o Impoluto, havia omitido gravações que contestavam aquela evidência — ou falsa evidência.

Moro pôs, então, para circular, de modo ilegal, uma inverdade. Mas os fundamentos da decisão de Mendes estão corretos e têm de ser aplicados no caso da nomeação de Alexandre Ramagem. Diálogo trocado via WhatsApp entre o então ministro e Bolsonaro deixam claro que o presidente pede a troca de Valeixo porque deputados que são seus aliados estariam na mira da Polícia Federal. E quem é o homem que poderia, a juízo do presidente, resolver a questão? A reposta está na conversa mantida entre Moro e a deputada Carla Zambelli: Ramagem — que ela chama “Ramage”. Há mais: o próprio presidente confessou que quer que a Polícia Federal lhe forneça informações ao arrepio da lei. Disse em seu pronunciamento: “Sempre falei pra ele: ‘Moro, não tenho informações da Polícia Federal. Eu tenho que todo dia ter um relatório do que aconteceu, em especial, nas últimas 24 horas, para poder bem decidir o futuro dessa nação.”

CONFISSÃO DE BOLSONARO

Mais: no seu pronunciamento destrambelhado, Bolsonaro deixou claro que tem especial interesse em operações da Polícia Federal que dizem respeito à sua própria família — chegou a confessar que recebeu relatório de operação sigilosa envolvendo o caso Marielle — e a si mesmo: não se conforma que a PF não tenha ligado Adélio Bispo de Oliveira a uma conspiração política para matá-lo. Há, pois, evidências de que Bolsonaro pretende jogar no lixo o Artigo 37 da Constituição e pretende, com a nomeação de Ramagem, praticar um dos chamados “ilícitos atípicos”. No caso, é o mesmo “desvio de finalidade ou poder” que levou Mendes a impedir a nomeação de Lula.

E olhem que não existe agora nenhum ilícito na origem da evidência, como havia na gravação da conversa entre Lula e Dilma, o que não mudava a essência do desvio de finalidade se verdadeiro. Ocorre que, reitere-se, houve manipulação das evidências: Moro omitiu as gravações que contestavam, então, a configuração do tal desvio.

Desta feita, as evidências são todas legais:

– Moro divulgou uma conversa sua no WhatsApp com o presidente e outra com Carla Zambelli;
– o próprio presidente disse querer da PF o que ela não pode, por disposição legal, lhe fornecer;
– Ramagem, está claro, é o nome escolhido para o exercício do desvio de finalidade.

O deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e o MBL anunciam que vão apelar à Justiça para impedir a nomeação de Ramagem. Partidos de oposição devem fazer o mesmo. É evidente que acho que tal nomeação, se acontecer, tem de ser obstada com base no Artigo 37 da Constituição. O “desvio de finalidade”, um dos ilícitos atípicos, nesse caso, não é uma simples possibilidade nem corre o risco de ser uma manipulação: além da prova, há a confissão involuntária de Bolsonaro.

LIMINAR DE CÁRMEN LÚCIA

Não custa lembrar: a ministra Cármen Lúcia concedeu uma liminar, em janeiro de 2018, que suspendeu a posse da então deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ) para o Ministério do Trabalho, no governo Temer. Um grupo de advogados entrou com uma Reclamação no STF alegando que a nomeação feria o princípio da moralidade, previsto no Artigo 37 da Constituição, uma vez que a parlamentar tinha uma condenação da Justiça do Trabalho.

Os fundamentos da decisão de Carmen nada têm a ver com os das liminares de Mendes. Os casos são absolutamente distintos. Mas, como se nota, o Supremo tem entendido que a competência do chefe do Executivo para fazer nomeações que a Constituição ou a lei lhe facultam não está acima dos fundamentos da “moralidade” e da “impessoalidade”. Assim, “legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade” jamais se anulam. Eles se completam.

O JUDICIÁRIO E O ESTADO DE DIREITO

Bolsonaro, bolsonaristas, Moro, moristas e gente da mesma laia nunca estiveram preocupados com fundamentação legal. De toda sorte, aplaudiram as duas decisões do passado, independentemente de suas respectivas fundamentações, porque isso lhes era politicamente útil.

Agora, claro!, Bolsonaro apela à lei para reivindicar o seu direito de nomear um delegado de família — da sua família — para a Polícia Federal.

Cabe à Justiça decidir se entende que o presidente está acima da Constituição. Sim, a lei lhe faculta a nomeação, desde que atendido o que dispõe o Artigo 37 da Constituição. E, como resta escancaradamente claro, com provas e admissão por Bolsonaro em boca própria, a indicação de Ramagem viola a Carta.

A depender do andamento, a coisa pode chegar ao Supremo. E por que não é “10” a chance de o tribunal impedir a posse de Ramagem? Depende de quem ficar com a relatoria.

Vamos ver. Que fale o Poder Judiciário, não é? Também a ele cabe dizer até quando e até onde Bolsonaro pode assaltar a Constituição e a institucionalidade. A frase tem sua dose de absurdo, claro! A boa resposta é esta: até nunca e até lugar nenhum.