A substituição do atual ministro da Saúde por um nome mais palatável para as preocupações eleitorais de Jair Bolsonaro vai ocorrer nas próximas horas. Sem Mandetta, surge uma questão crucial: a manipulação do número de vítimas. Mas há um problema ainda maior
Leonardo Sakamoto, em seu blog
A substituição do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, por um nome mais palatável para as preocupações eleitorais de Jair Bolsonaro traz, além da preocupação sobre o afrouxamento no combate ao coronavírus, uma questão crucial de transparência: a contagem de vítimas. Qual a chance, sob nova gestão, dos números serem manipulados para “caberem” na narrativa do presidente da República?
Temos, hoje, um gigantesco problema de atraso na realização de testes em suspeitos de Covid-19 – tanto os dos pacientes vivos quantos daqueles que vieram a falecer. Por isso, a contagem de corpos feita diariamente pelo Ministério da Saúde é, tal como a luz que nos chega das estrelas, uma fotografia do passado.
Mas uma fotografia imperfeita, pois números referentes a diferentes datas chegam simultaneamente. Assim, não é possível dizer simplesmente que a curva de casos que vemos se refere a uma semana, dez dias, atrás. Com isso, há um descompasso entre a realidade e os dados, o que foi percebido pelo aumento no fluxo de pronto-socorros, UTIs e cemitérios muito antes disso se traduzir em números.
Por exemplo, considerando os números em 5 de abril: a diferença entre as mortes ocorridas até aquela data (747, até agora, pode aumentar quando novos dados chegarem) e o número divulgado naquele momento (486) é de 261. Para ter uma ideia do que é isso representa, nesta terça (14), foram divulgados 204 novos óbitos.
Também temos uma subnotificação monstruosa causada pela baixa capacidade de testagem no Brasil. Hoje, temos 1.736 mortes registradas e 28.320 casos oficiais. Estudos projetam, contudo, que os números reais de casos seriam entre 12 e 15 vezes maiores do que aquilo que é divulgado.
Ao que tudo indica, Mandetta e sua equipe têm sido transparentes quanto a esse problema e alertado para a necessidade de aumentarmos o número de testes na população.
Mesmo assim uma pauta discutida, hoje, em qualquer veículo de comunicação que queira ser considerado sério é a possibilidade de manipulação dos dados – o que aumenta a importância do monitoramento por parte da imprensa. Mesmo que tenhamos uma parte dos Estados preocupada com a transparência, pesquisadores reclamam que os números relatados sobre as vítimas nas unidades da federação também sofrem pressão política. Em outras palavras, o caminho entre o laboratório de testes e a divulgação final pode ser longo e tortuoso.
Não é preciso ser especialista para entender que um país deve fornecer dados confiáveis não apenas sobre sua saúde e economia, mas a respeito de todos os aspectos da vida cotidiana, a fim de que pessoas, organizações e empresas tomem decisões baseadas na realidade. Mesmo, e principalmente, se os dados forem negativos.
O governo Bolsonaro, contudo, tem um histórico de briga com os números quando estes lhe são desfavoráveis. O fato de o país contar com institutos de pesquisa excepcionais vale muito pouco para um presidente que rejeita a ciência e trabalha com a intuição. Consequentemente, para ele, o problema não é a febre, mas o termômetro.
Bolsonaro já afirmou que a metodologia de cálculo de desemprego do IBGE estava errada porque não concordava com ela. O general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, disse que as taxas de desmatamento eram manipuladas e infladas porque não concordava com elas. Osmar Terra, então ministro da Cidadania, disse não confiar em pesquisas da Fiocruz, instituição de renome internacional – que, hoje, é fundamental no combate à pandemia, porque não concordava com elas. O chanceler Ernesto Araújo não acredita em mudanças climáticas e afirmou que o aumento da média da temperatura global ocorreu porque estações de medição de temperatura que estavam no “mato” hoje estariam no “asfalto”. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, menosprezou o questionário do Censo.