A guerra de vocabulário que levou o Brasil e a política ao fundo do poço
O que observamos hoje no Brasil é uma política conduzida como um carro desgovernado e sem freio, descendo ladeira abaixo. Não existe projeto, não existe ideia, não sabemos onde esse carro desgovernado vai parar
Gustavo Coura Guimarães*, Pragmatismo Político
De uns anos para cá, falar de política no Brasil tornou-se uma guerra retórica antes de tudo. O que deveria guiar o debate – ideias, projetos, propostas – acabou se volatilizando, deixando lugar a um vocabulário infundado que alimenta desde então um verdadeiro diálogo de surdos. Não se trata aqui de defender a esquerda ou a direita, mas apenas de expor uma constatação que tem empobrecido as discussões que deveriam, principalmente, alimentar o debate democrático. Deixe-me explicar o porquê.
O Partido dos Trabalhadores esteve no governo do Brasil de 2002 a 2016. Nesse período, o foco dos presidentes Lula e Dilma Rouseff foi voltado para as políticas sociais, ou seja, para reduzir o abismo existente entre pobres e ricos no Brasil. E aqui, já cabe uma ponderação. Quando se fala em « pobres » e « ricos » no Brasil, fala-se de pessoas extremamente pobres e de pessoas extremamente ricas. A classe média não se enquadra nessa classficação. Embora algumas pessoas que compõem a classe média se considerem « ricas », elas não são.
Isto posto, vale lembrar o que determina a eficácia de uma distribuição de renda. O índice Gini mede a distribuição das riquezas entre os habitantes de um país e os classifica entre 0 e 1. Quanto mais próximo de 0, melhor é a distribuição de renda dentro do referido país. Segundo dados de 2019, o Brasil tem um índice de 0,509. Trata-se de um dos mais altos níveis já alcançados nos últimos anos. A título de comparação, em 2015, estávamos em 0,494. Isso significa que, de 2015 em diante, menos pessoas tiveram acesso a comida, educação, moradia, assistência médica, entre outros requisitos básicos para se viver dignamente. Quer dizer que dessa época em diante, uma política social menos inclusiva tem sido conduzida de forma a aumentar o abismo entre ricos e pobres no Brasil.
Essa imensa diferença de distribuição de renda parece abstrata quando não conhecemos a realidade vivida por milhares de pessoas nos cantões esquecidos do Brasil. Mas outro índice vem nos esfregar na cara essa balança nada equilibrada que pesa somente para um lado há anos. O 1% mais rico do Brasil concentra 28,3% da renda total do país. A título de comparação, nos Estados Unidos – visto como um modelo por muitos brasileiros – o 1% mais rico da população concentra 20,2% da renda total do país. No entanto, não podemos dizer que os Estados Unidos tenham uma política social muito generosa. E ainda assim, a distribuição de renda no país é mais igualitária em relação ao Brasil.
Uma guerra de vocabulário
Para defender esse modelo desigual que o Brasil apresenta, uma verdadeira guerra lexical foi declarada. As políticas sociais viraram sinônimo de « assistencialismo »/ « socialismo » / « comunismo », pobres tornaram-se « vagabundos », ricos passaram a ser vistos como « trabalhadores » e concentração de riquezas virou sinônimo de « mérito ». Assim, tudo estava orquestrado para que o abismo entre miseráveis e milionários aumentasse cada vez mais.
Essa questão retórica foi bem assimilada pelos simpatizantes do então candidato a presidente Jair Bolsonaro, que deu uma contribuição generosa a essa deturpação de conceitos para conseguir se eleger. Dessa forma, todos os adjetivos negativos possíveis foram sendo recolhidos ao longo do tempo para se referir à esquerda, ou seja, ao que ele buscava combater.
Assim, a corrupção que assola o Brasil há décadas, tornou-se uma quase exclusividade dos governos do Partido dos Trabalhadores. Artistas e intelectuais, por promoverem o pensamento crítico e o debate de ideias, viraram sinônimo de aproveitadores das leis de incentivo à cultura e até mesmo os meios de comunicação passaram a ser taxados de comunistas por, muitas vezes, colocarem o dedo na ferida e expor as inúmeras contradições desse discurso vazio.
Por outro lado, a ala conservadora do Brasil, encabeçada por Jair Bolsonaro, utilizou um vocabulário militarista, a fim de atribuir mais seriedade ao seu discurso. Por isso, a questão da liberação do porte de armas, do combate à corrupção e ao laxismo da justiça acabaram sendo vistos como valores perdidos por conta da política permissiva e corrupta do Partido dos Trabalhadores. Os militares seriam então os guardiões da moral e dos bons costumes que trariam de volta o equilíbrio e a razão para o cotidiano dos brasileiros.
Dessa forma, a oposição entre o « bem » e o « mal » havia sido desenhada. E o mundo imaginário prometido pelos adeptos do discurso militarista parecia cada vez mais real, perfeito e acessível. Faltava apenas uma forma de fazer com que o barro colasse, ou seja, de adquirir a adesão popular.
A internet, e mais precisamente o WhatsApp, tornou-se o canal por onde essa onda anti-sistema foi ganhando corpo. Exibindo argumentos do tipo « essa notícia a Globo não mostra » ou « em exclusividade mostramos isso », as pessoas tiveram a impressão de ter o monopólio da informação em suas mãos e de poder se informar livremente e sem qualquer filtro. Ledo engano. O filtro poluente já havia sido passado em tudo antes que qualquer informação caísse na rede. O ato de compartilhar as chamadas fake news apenas fez com que esse fenômeno de desinformação se alastrasse Brasil afora como uma virose. A partir daí, seria difícil chegar à raiz do problema e desfazer todo o mal-entendido gerado por esses compartilhamentos impulsivos.
O que observamos hoje no Brasil é uma política conduzida como um carro desgovernado e sem freio, descendo ladeira abaixo. Não existe projeto, não existe ideia, não sabemos onde esse carro desgovernado vai parar, nem quantos acidentes vamos contar no final dessa corrida perigosa e maluca. O que muitos já começaram a entender é que a retórica que tanto os seduziu em um momento de fraqueza, não tem consistência para poder dirigir o país em direção a novos horizontes mais promissores. Nosso carro desgovernado está descendo e rápido. Só nos resta esperar que ele não desça muito baixo, pois a subida corre o risco de ser ainda mais difícil e dolorosa.
*Gustavo Coura Guimarães é jornalista e doutor em Cinema e Audiovisual.
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