Capitalismo

As lições da pandemia e a obscuridade dos caminhos

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Existiu um modo de vida antes da pandemia, existe um durante e existirá um modo de vida depois dela. As peças estão no tabuleiro e o jogo é em tempo real

(Imagem: Andrew Testa | NYT)

Rafael Rosa*, Pragmatismo Político

Engraçado como uma “gripezinha” modificou o panorama global em pouco menos de seis meses após início dos casos. Engraçado ainda como o mundo inteiro, imbuído na atmosfera lucrativa de acúmulo de capital e com medo de qualquer possibilidade de prejuízo, subestimou o poder brutal da natureza. Nem precisa dizer sobre as asneiras que se diziam sobre o aquecimento global, aceleração das mudanças climáticas, e coisas do tipo, que eram vistas como aberrações ideológicas que fariam a economia global desacelerar. Acontece que está acontecendo!

O clima, a natureza, o natural, se impuseram sobre os nossos descaminhos. Dizem às más línguas que é o sistema imunológico da terra reagindo a praga que somos nós. Argumento bem lógico se considerarmos o mundo como um organismo vivo, no qual somos meros coadjuvantes, apesar de acreditarmos sermos protagonistas.

Um ser vivo microscópico veio nos ensinar que é preciso apresentar outras coisas sobre o que é viver em sociedade, qual o papel do Estado no mundo e como tudo isso tem a ver com pandemia, com o coronavírus. E, sobretudo, como ele pode modificar e está modificando as relações sociais, as relações globais, quando ele deixar suas marcas indeléveis nas famílias que tiveram entes queridos marcados pelo covid-19, na economia global que terá de se reinventar, no “livre mercado” ou sua “mão invisível”, que até pouco tempo, para mim, não passava de mera abstração, mesmo com um milhão de informações disponíveis no mundo virtual.

Estou sendo otimista, porque se as lições do corona não forem estudadas, e já há ensaios de como utilizá-la para manter tudo que ela veio transformar – vide os caminhos dos Estados Unidos, Turquia, China e Hungria – , é possível que outra pandemia, talvez mais violenta, limpe a terra da tragédia que temos sido. Afora as elucubrações sobre o impacto da pandemia no globo, o caso brasileiro é sem igual, pelas peculiaridades da sua atual situação, desencadeada, vide todos os elementos históricos, pela insatisfação de um grupo político que perdeu algo de seu poder, para outro grupo há aproximadamente duas décadas, e acostumado a dominar o país, articularam a retomada do poder. Forma eufêmica de dizer golpe!

O país tem um espécime raro como presidente! Averso a tudo que é científico, ético e humanitário, o dito cujo teima em negar a “importância” da pandemia alegando que algumas mil pessoas podem morrer em prol da economia, o grande baluarte dos reveses políticos de 2016. Essa aversão se traduziu num desprezo pelas pessoas e pela situação precária na qual grande parte dos brasileiros vivem. E daí, a partir daí, o corona está desempenhando um papel fundamental em mostrar às pessoas que surfaram na onda política de 2016 e 2017 quem é o infeliz presidente da república – como se isso fosse um dos mistérios dos planetas – e o que são as relações sociais.

Desde 2014, as pessoas vêm falando que o Partido dos Trabalhadores é isso e aquilo, a partir dos escândalos do mensalão de 2006-2008 e da Lava Jato, alimentando o discurso de ressureição do inimigo interno: comunista, comedor de criancinha, que doutrina, distribui mamadeira de piroca e kit gay nas escolas. Esses elementos, a despeito de todas as críticas ao Partido dos Trabalhadores, bizarramente foram utilizados pelo famigerado atual presidente – um rei evidentemente nu –, mobilizando através de redes de robôs na internet como elemento propulsor de sua candidatura à presidência. Tudo isso com o apoio do juiz que não fazia política, mas virou ministro, mirando uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, que contribuiu para a prisão política do principal candidato do Partido dos Trabalhadores. E o COVID-19? Onde entra nessa história?

Bem… boa parte da sociedade que andava polarizada entre esquerda e direita, com a balança pendendo severamente para este lado enxergando tudo, com sua lente míope, como uma tentativa de “comunicizar” – licença para criar essa palavra – o país: greves e manifestações passaram a ser vistas como coisa de vagabundo, já que aconteciam durante a semana. “Ninguém” percebeu que esse é um discurso do patrão que sai às manifestações ao domingo para não prejudicar sua rentabilidade. Começaram a dizer que sindicato, que lutou e contribuiu com grandes conquistas para os trabalhadores e trabalhadoras, que trabalhavam até pouco tempo, sob as benesses dessa luta e conquista, era coisa de gente vagabunda e desocupada. Tudo isso em nome do ódio, rancor ou sei lá mais o que, direcionado ao Partido dos Trabalhadores, cujas pesquisas mostram, pelo menos nos dois primeiros mandatos do partido, que foi o melhor governo da história recente do país. E o COVID-19 com isso?

Lembremos que no dia 18 de março de 2020 estava marcada uma grande manifestação nacional contra o atual presidente do país, vista por muitos como coisa de vagabundo e desocupado, manipulada politicamente pelos sindicatos e partidos políticos. Tal evento foi cancelado, por prudência, por conta da pandemia que “começava” a se alastrar pelo país. Mas em seguida, ou concomitante a isso, o COVID-19 impôs a boa parte da população brasileira um confinamento sem precedentes, de modo que todo mundo foi e está sendo compelido, mesmo a contragosto dos patrões manifestantes de domingo, a participar da maior “greve geral” involuntária da história da Brasil. Se puxarmos pela memória, como diziam os antigos, recordaremos que Raul Seixas havia narrado algo parecido em uma de suas famosas composições, O dia em que a terra parou. Ela diz que certo dia as pessoas do mundo inteiro decidiram não sair de casa como se fosse combinado em todo o planeta…

Há controvérsias sobre todo mundo ter parado, afinal de contas existem os pelegos e os que não podem parar. No primeiro grupo há pessoas que não acreditam no vírus e teimam em encher as ruas, as praças, as praias, atitudes que parecem consolidar o estado suicidário nos termos de Safatle; e outras que querem seus lucros mantidos e pressionam o governo a reabrir o comércio. No segundo, há os que simplesmente não puderam parar porque precisam comer e estão submetidas à informalidade bruta ou sofisticada da uberização; e há ainda aqueles que não tem como ficar em casa, porque não as têm, vivendo na corda bamba a beira do precipício.

Mesmo com essas assimetrias, chamo o confinamento de greve geral involuntária porque os resultados colaterais obtidos com o confinamento impactam diretamente na economia do país e isso faz com que as instituições afetadas pela “greve pandêmica” busquem soluções imediatas para a resolução da questão, mesmo a contragosto de entidades e pessoas insanas que compõe a sociedade. Solução esperada com frequência quando as categorias de trabalhadores fazem reivindicações por melhoras salariais e de condições de trabalho, mas que frequentemente por conta da falta de unidade e unicidade obtêm ganhos pífios, passando a sofrer ampla hostilidade da sociedade. Uma das lições da pandemia é que, juntos em comunidade, podemos mais como no dia em que a terra parou. Traduzindo, a terra só para quando o trabalhador não executa ou não pode executar o seu trabalho. As instituições que são pressionadas por uma greve só cedem quando a demanda é feita em conjunto e articulada. Óbvio, não? Sim! Mas havíamos esquecido e infelizmente a pandemia chegou para nos lembrar da premissa básica do ser social: viver coletivamente.

É como em A Peste, de Albert Camus, que narra a história de trabalhadores argelinos que descobrem a solidariedade diante da ferocidade da peste bubônica. Lição maior é que diante de toda a tragédia global que atravessa continentes precisamos fazer isso em coletivo.

Toda essa compreensão acerca da coletividade já nos encaminha para mudanças significativas em nosso modo de viver. Mudanças institucionais (jurídico, legislativo e executivo), na esfera privada, no mundo do trabalho, que dizem respeito sobretudo a forma como a tecnologia e o mundo digital serão utilizados nos processos decisórios, de gestão e de governança institucional. Na vida política em processos e disputas de poder no teatro global, que não sabemos onde nos levará, sobretudo diante das recentes ações dos Estados Unidos em relação aos suprimentos médicos de outros países, que pode acarretar no fortalecimento ou esfacelamento das democracias. Na vida individual e na maneira como compreendemos o mundo, no horizonte de expectativas e projeções de futuro e esperança mesmo.

Existiu um modo de vida antes da pandemia, existe um durante e existirá um modo de vida depois dela. Só não sabemos como será o mundo depois que ela passar. Se sairemos melhores enquanto economia e sociedade surfando numa era de ouro como no pós-segunda guerra, se descobriremos a solidariedade como na narrativa de Camus, mesmo que a estupidez insista sempre em cobrar a conta. Ou piores como em Admirável mundo novo de Aldous Huxley e/ou 1984 de George Orwell, com diferentes mecanismos de controle ordenados num panóptico sistêmico quase que inviolável. As peças estão no tabuleiro e o jogo é em tempo real. Infelizmente nossos jogadores ou nossas peças parecem não estar à altura do corona que nos aprisiona enquanto circula por aí.

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*Rafael Rosa é Doutor em História Social pela Universidade Federal da Bahia.

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