Enquanto assistíamos e zombávamos dos tolos, os parasitas se alimentavam, cresciam, ocupavam lacunas e, agora, começam a fervilhar na superfície. Resta lembrar que eles guardam uma diferença básica em relação aos lunáticos: são crescidos, organizados e sabem muito bem que a terra é redonda e continua a girar
Denis Castilho*, Pragmatismo Político
Depois da saída de Moro do governo de Bolsonaro, não faltam especulações sobre o que vem pela frente. No jogo do poder, o caminho da Globo ficou mais evidente e representantes do mercado rentista temem a saída de Guedes. As investidas do grupo da família Marinho contra o governo estavam delicadas por conta de um conjunto de fatores, inclusive porque Moro estava lá dentro. Mas o imbróglio vai além.
O rearranjo interfere em peças importantes, a exemplo de grupos corporativos (notadamente ligados ao capital rentista), de líderes partidários e de militares de alta patente. Independente se sustentam apoio ao atual governo ou se seguem sem ele, esses grupos se movimentam em torno de um projeto em comum. Fato é que são ainda mais perversos porque carregam um estigma de controle e de manipulação muito mais bem articulado e engenhoso. De imediato, não abrem mão dos lunáticos porque ganham posições a cada episódio protagonizado por eles. Mas isso parece ter um limite.
A trama que se anuncia visa desmontar as instituições ditas democráticas e armar um aparelho de Estado ainda mais autoritário e cerceador. A estratégia, contudo, não segue os padrões de 1964. Trata-se de uma corrosão por dentro e amparada por acordos político-econômicos que não hesitam costurar apoio às esferas religiosas e milicianas. A repetida substituição de ministros por militares e pastores não deixa de ser um sintoma, bastando observar que o fundamentalismo religioso-militar já ocupa posições estratégicas no poder.
As reformas que aprofundam as desigualdades e alavancam o autoritarismo, o contexto que intensifica o conflito capital-trabalho, as brechas para legalização de invasão em terras indígenas, a conexão com milícias e fundamentalistas religiosos, a fratura e/ou inércia das esquerdas institucionais e a própria circunstância desencadeada pela pandemia também abrem caminho a este conluio.
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Bolsonaro não deixa de ser funcional ao arranjo e, obviamente, não é ingênuo. Basta observar a jogada com o centrão, o incentivo aos atos pró-intervenção militar, a ampliação do porte de armas e o cinismo que se arrasta há décadas. A correlação com o fundamentalismo religioso-militar é explícita. A sina de lunático, as motivações conspiratórias e principalmente as tramoias junto aos filhos, contudo, colocam prazo de validade àquilo que o sustenta – salvo o projeto que, com ele ou sem ele, se desenrola.
Embora esta coalizão guarda estreita relação com generais, sua agenda não se fundamenta puramente nos preceitos militares. A ruptura em marcha não pode ser localizada com precisão porque guarda relação com os regimes de acumulação e encontra eco nas tendências que se desenham com a pandemia. Um modelo de Estado ainda mais perverso se anuncia porque as corporações, influenciadas por novos imperativos da geopolítica, o demandarão em sua forma mais radical.
É por isso que esta coalizão encontra ressonância nas tendências de novas formas de acumulação e carrega um sistema de violência muito mais denso e bem articulado do que aquele ensaiado pelos lunáticos. Portanto, não se iludam. Embora o episódio da demissão do ex-ministro da justiça sugira a derrocada de um governo, a trama da pilhagem e do autoritarismo apenas continua. O episódio também desnuda, obviamente, a falência de um pseudo líder, bastando lembrar que, enquanto o país registra mais de 63 mil casos de Covid-19 e quase 5 mil mortes (número muito abaixo dos casos reais em função das subnotificações), o governo endossa a crise política, incentiva aglomerações e conduz o país a uma tragédia que não ficará registrada apenas nas lápides.
Em um cenário onde a esquerda institucional se perdeu no poder e se fragmentou totalmente, a premissa de que o fundo do poço é mais embaixo se tornou apenas um detalhe. O leviatã beira o barranco e as distopias estão vivas. Diante das novas demandas de controle e dos imperativos corporativistas, a elite de rapina sabe que a convivência com lunáticos termina em algum momento. Aproveitando das circunstâncias e do embrutecimento de boa parte da população, os dementes até que foram funcionais, mas ficarão em desuso.
De agora em diante, o pragmatismo perverso bate à porta. Mas o jogo da rapinagem não pode continuar alimentando uma esquerda letárgica e do “tira sarro”. É um erro dizer que o jogo virou porque a polarização não deixará de se alimentar do cinismo e da inação. As investidas contra o terraplanismo, ao deixar de mirar o alvo certo – ao não dar lugar à uma forma de organização séria e baseada no protagonismo, terminou por colocar o jogo em um patamar ainda mais perigoso.
Enquanto assistíamos e zombávamos dos tolos, os parasitas se alimentavam, cresciam, ocupavam lacunas e, agora, começam a fervilhar na superfície. Resta lembrar que eles guardam uma diferença básica em relação aos lunáticos: são crescidos, organizados e sabem muito bem que a terra é redonda e continua a girar.
*Denis Castilho é doutor em geografia e professor do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás.
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