Os debaixo estão se organizando e solidarizando entre si enquanto os de cima estão preocupados com quem sai e quem entra nos ministérios
Vitor Ahagon*, Pragmatismo Político
“Diz-se, amiúde, que os anarquistas vivem em um mundo de sonhos de futuro, e não vêem as coisas do presente. Vemo-las em demasia sob as suas verdadeiras cores, e é isso que nos faz brandir o machado na floresta de preconceitos autoritários que nos obsecam”. – Piotr Kropotkin
O geógrafo e anarquista Piotr Kropotkin (1842 – 1921), ao longo de sua vida acadêmica e militante, escreveu páginas e mais páginas sobre como a solidariedade era um elemento constituinte do desenvolvimento dos seres humanos e dos animais. Sua obra mais conhecida sobre esse assunto foi Ajuda Mútua: Um fator evolutivo (1902), neste trabalho, Kropotkin estabelece um diálogo com T.H. Huxley (1825 – 1895) acerca da relevância que este dava à luta pela disputa por alimento. Kropotkin não descartava a luta por alimentos como um fator evolutivo, no entanto, quando observou o comportamento dos animais que habitam regiões onde há escassez de alimentos, percebeu que os animais que conseguiam melhor se adaptar e sobreviver eram aqueles que se ajudavam mutuamente. Portanto, os seres humanos, por serem animais sociais, carregam na sua história evolutiva tanto tendências da luta e disputa encarniçada por alimento, quanto àquela da solidariedade grupal que criam laços comunitários entre os indivíduos da mesma coletividade.
Neste sentido, o que Kropotkin propunha no campo político era de reforçar os laços comunitários que carregamos ao longo de nossa história milenar, por isso que não podemos acusar Kropotkin de eurocêntrico ou catequizador, pois esta forma de anarquismo não busca a conversão de pessoas ao seu campo político. O anarquismo kropotkiniano intenta estimular aquilo que já existe e que já é feito por pessoas em todas as partes do mundo há muito tempo, ou seja, busca estimular os laços comunitários e de solidariedade que são colocados em prática em todas as latitudes para que possam se fortalecer e se desenvolver cada vez mais.
Alguns poderiam acusar que essa perspectiva como ingênua, pois no momento em que nossa sobrevivência é posta em cheque seria “cada um por si e Deus por todos”, como diz o ditado popular. Talvez essa ideia possa ser verdadeira quando observamos as classes dominantes disputando o exercício da autoridade, pois seria um absurdo considerar práticas de solidariedade no contexto da luta pelo poder. No entanto, quando a questão do poder não está em jogo a realidade nos mostra um cenário muito diferente. Em meio a pandemia e num contexto de risco iminente de perder a vida, vemos em todas as cidades brasileiras, periferias, favelas e comunidades, ações de solidariedade para seus moradores, mas não apenas nas periferias e favelas, nos centros urbanos vemos distribuições de comida, kits de higiene e roupa para pessoas em vulnerabilidade.
Ações de solidariedade estão sendo feitas em todas as partes. Em São Paulo, existem diversos comitês populares auto-organizados que estão recolhendo doações e organizam campanhas de conscientização para evitar a transmissão do novo coronavírus, em Pernambuco formou-se uma rede de solidariedade que compartilha informações sobre o Covid-19 e cestas básicas. O site Periferia em Movimento em parceria com Alma Preta, Desenrola e Não Me Enrola com co-produção de Gisele Brito, divulgam informações sobre a importância do isolamento social, como as pessoas podem conseguir o auxílio emergencial sem cair em golpes, iniciativas de solidariedade nas quebradas e muito mais pelo Whatsapp.
Em Belo Horizonte, a ocupação Kasa Invisível fez um chamado solidário contra o Covid-19 recolhendo doações como materiais de higiene e limpeza, materiais de proteção e EPIs, alimentos não perecíveis, água mineral e remédios, e na quinta feira do dia 23/04 fizeram a distribuição desses materiais e mais 50 marmitas, feitas pela cooperativa Botequim Vegano, na região da Praça Raul Soares no centro da cidade.
Através do Podcast Antinomia, podemos ouvir como em diversas parte do Brasil e do mundo os de baixo estão enfrentando o novo coronavírus. No terceiro episódio do programa Fronteira, sabemos das ações de solidariedade na favela da Maré a partir do relato de Timo. Os trabalhos feitos pelo coletivo Roça e outros coletivos autônomos buscam garantir o acesso à população de produtos agroecológicos nas periferias do Rio de janeiro. No quarto episódio do Fronteira, escutamos a análise conjuntural de Alexandre Samis sobre os trabalhos realizados e as possibilidades de articulação entre as organizações comunitárias, quilombos e o movimento anarquista no Rio de Janeiro.
Várias outras iniciativas como essas estão espalhadas por todo o Brasil. O instituto Marielle Franco criou um mapa para dar visibilidade ao combate ao Covid-19 nas periferias de todo Brasil, através dele sabemos como podemos nos solidarizar com doações financeira e de produtos para várias comunidades e favelas de norte a sul, de leste a oeste do país. Ainda existe a possibilidade de cadastrar no mapa as ações de solidariedade que estão acontecendo nas quebradas em que vivemos, conhecemos e atuamos.
Todas essas ações de solidariedade nos mostram que os debaixo estão se organizando e solidarizando entre si enquanto os de cima estão preocupados com quem sai e quem entra nos ministérios, quem está perdendo ou ganhando popularidade e quem serão os próximos candidatos à presidência da república em 2022. Nesse sentido, Kropotkin de fato estava certo: Nós, seres humanos, somos um agregado complexo e diverso de tendências individualistas e solidárias, enquanto a luta pelo poder estão nos de cima, vemos a ajuda mútua nos de baixo.
E como os camaradas da ocupação Kasa Invisível muito bem colocaram, “é importante sempre lembrarmos que a pandemia não significa inação!” Então, bora trabalhar e fazer crescer a solidariedade entre nós agora, nesse momento de pandemia, para que quando ela passar, e vai passar, fazer guerra àqueles que querem exercer a autoridade!
*Vitor Ahagon é professor de História e membro da Biblioteca Terra Livre.
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