Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Gripe mata. Mata muita gente, todo ano. As mortes, no entanto, se concentram nos mais velhos, por isso criaram as vacinas.
As vacinas só puderam ser criadas porque toda cepa gripal nasce na China e percorre o mundo em seis semanas. Portanto, antes de chegar ao país, a vacina já está pronta, feita quase sempre na Europa.
A gripe A de 2009 contaminou 1.4 bilhões de pessoas, ou 21% de toda população global e matou estimados 575 mil pessoas em todo mundo.
Desde o início de 2016 até o dia 13 de agosto de 2016, 1.775 pessoas morreram por H1N1 no Brasil, segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde.
Até a segunda semana de julho de 2018, o país registrou 839 mortes pela gripe daquele ano.
O Corona no Brasil, nesse ano de 2020, acusa 25.758 casos confirmados, 14.026 casos recuperados e 1.557 mortes. Enquanto no mundo temos 2.006.513 casos confirmados, 501.758 casos recuperados e 128.886 mortes.
H1N1, H3N2 e influenza cumpriram sua passagem com muitas mortes.
A mágica dos números pode nos iludir, mas a utilizo aqui para iniciar uma reflexão sobre as questões da comunicação.
Em cada região, em cada país, em cada parte do mundo as informações que devem chegar à população são controladas. Isso acontece por várias razões e cada departamento cuida para que esse filtro funcione sempre.
No Brasil, o mapa da violência passou a ser mantido por entidades públicas e privadas para monitorar as ocorrências diárias de assassinatos, pois antes disso, apenas os órgãos oficiais forneciam tais informações.
Quando se trata de questão de saúde pública a mesma regra é obedecida. As informações são sempre filtradas, respondendo a um escalonamento de decisões, rigorosamente de cima pra baixo. Não questiono aqui as intenções dessas regras, mas certamente uma delas é o perigo, num mundo em que o medo e o terror são aditivos necessários ao bom funcionamento da máquina, considerando consumo e políticas.
Quando o ataque às torres gêmeas aconteceu, o presidente de lá foi a público estimular o consumo, pois o modo americano estava ameaçado. Durante a crise de 2008 por aqui, o presidente foi a público estimular o consumo, baseado na premissa de que se há consumo, há produção, há emprego.
Mas se o medo é um componente importante no quotidiano, se há descontrole do medo, tal imprevisibilidade é danosa para o próprio sistema.
Vale aqui um conto da tradição sufi.
A Peste ia a caminho de Bagdá quando encontrou Nasrudin.
Este perguntou-lhe: – Aonde vais?
A Peste respondeu-lhe: – A Bagdá, matar dez mil pessoas.
Depois de um tempo, a Peste voltou a encontrar-se com Nasrudin. Muito zangado, o mullah disse-lhe: – Mentiste-me. Disseste que matarias dez mil pessoas e mataste cem mil.
E a Peste respondeu-lhe:
– Eu não menti, matei dez mil. O resto morreu de medo.
O que diferencia, por exemplo, os eventos gripais de 2009 com os de 2020 é que vivemos uma experiência completamente nova em relação à forma com que a comunicação funcionou.
Também lá a cepa foi identificada como uma pandemia, mas as informações foram colocadas sobre estrito controle dos sistemas de poder. O resultado foi que as populações entenderam pandemia com endemia, ou seja, como um fenômeno localizado que ninguém sabia onde.
O que transformou o coronga numa clássica pandemia foi um movimento emergente dos sistemas comunicativos. E ele começou na Itália, em que numa cidade contabilizou as mortes e divulgaram essas mortes sem os controles habituais dos sistemas hierárquicos.
Outra cidade fez o mesmo e divulgou seus mortos, o que fez dobrar o número apenas expandindo para duas pequenas cidades. Daí foi uma queda de dominó, com dados e imagens de outras cidades disparando os alarmes nas casas, nos bairros, nas cidades até que, pelas facilidades da expansão comunicativa, saíssem da Itália e ganhassem rapidamente o mundo.
Ganhando o mundo, cada um tratou de identificar seus mortos, ampliando exponencialmente os dados. Não havia mais como conter a emergente movimentação das informações e dos números. E aquilo que normalmente acontece sem alarde, se tornou pânico.
Leia aqui outros textos de Eduardo Bonzatto
Os sistemas emergentes já foram bem estudados por Steven Johnson em seu livro Emergência, a dinâmica de rede em formiga, cérebros, cidades e softwares e que pode ser traduzida como um fenômeno de auto-organização em movimentos botton-up, ou seja, de baixo para cima. E quando se trata de sistemas de informação, em descontrole das arquiteturas up-down que são seletivas e funcionais, então não há mais possibilidade de se pensar em confiabilidade, pois toda sorte de dados operam fora das teias de controle e descambam numa mistura de notícias e fakes, de tal sorte que não é mais possível considerar o que se ouve, lê ou vê.
Os termos controle e confiável fornecem alguma estabilidade ao real, portanto não se trata aqui de evidenciar os enunciados sobre verdade ou falsidade, mas realmente como os controles sobre a informação consistem numa “normalidade” que aceitamos, quase incondicionalmente.
Não deixa de ser curioso que o seu nome tenha sido utilizado para identificar uma síndrome. A Síndrome de Stevens–Johnson (SSJ) é uma reação adversa grave da pele a medicamentos ou infeções. A SSJ e a necrólise epidérmica tóxica (NET) são duas formas da mesma doença, sendo a SSJ a menos grave. Os sintomas iniciais de SSJ são febre e sintomas semelhantes aos da gripe.
Estranhamente se aplica perfeitamente ao nosso caso do corona, pois o efeito comunicativo provocou uma reação bem adversa que agravou o caminho habitual da cepa, introduzindo o medo como um componente novo.
O medo produz um efeito no cérebro que é devastador. Normalmente, nosso sistema imunológico funciona no automático, sendo acionado quando é preciso e descansando se não há ameaças. Mas o cérebro tem participação nesse processo. Por exemplo, se sentimos as ameaças continuamente e solicitamos medicamentos a todo instante, a hipocondríaca atuação enfraquece o sistema imune, que é compensado com a avalanche de químicas utilizadas.
O medo nos coloca à disposição dos ataques, de modo geral. Com o pânico global, o que seria um agente patogênico determinado se tornou num matador global, impedindo em muitos que o sistema de defesa fosse acionado, pois estavam predispostos à recepção da patologia.
As mortes, mesmo assim, não escapam para muito além do que normalmente acusam as cepas anteriores. Em 2018, 839 mortes sem alarde, enquanto em 2020, com alarde do fim do mundo batendo à porta de toda gente, com informações televisivas e de internet 24 horas por dia tocando o terror, até o momento registram 1557 mortes.
Mas o conto sufi tem propósito, ainda podemos multiplicar por dez esses números, já que o processo está completamente fora de controle e o medo é generalizado.
Sob qualquer ponto de vista, a ignorância é uma benção.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
Siga-nos no Instagram | Twitter | Facebook