"Urubus nos céus e a fumaça dos corpos queimados. Vivo um filme de terror apocalíptico". Província mais atingida no Equador teve 6,7 mil mortes em 15 dias. Autoridades estão perdidas e não conseguem determinar as causas dos óbitos. Retroescavadeiras abrem valas em cemitérios
Há um avanço descontrolado do novo coronavírus no Equador e as autoridades sanitárias do país não sabem como lidar com o alto número de mortes. O cenário é tão caótico que as causas dos óbitos sequer estão sendo identificadas.
“Vejo urubus no céu de Guayaquil e à tarde a fumaça dos corpos sendo queimados em um dos cemitérios da cidade. Agora, estou vivendo em um filme de terror, apocalíptico”, desabafou um engenheiro brasileiro que mora há décadas na cidade portuária equatoriana.
Com cerca de 2 milhões de habitantes, Guayaquil é o motor e centro econômico do Equador, mas está com as ruas desertas. Há duas semanas, desde que se tornou o epicentro da pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2) no país, vem enfrentando um cenário de horror.
O clima quente da cidade costeira voltada para o Pacífico acelera o processo de putrefação. Os urubus, antes raramente vistos, agora rondam parte da cidade. O céu foi invadido pelo material exalado por crematórios.
“Os relatos de pessoas mortas nas ruas que vocês estão recebendo no Brasil são verdadeiros. O líquido dos corpos em decomposição vai sendo derramado nas ruas, infectando tudo. O mau cheiro é insuportável”, conta o brasileiro, que prefere não ter sua identidade revelada.
Guayaquil tem 4 mil pacientes com Covid-19 e hospitais superlotados antes mesmo de atingir o pico no número de infectados. Há relatos de famílias que não conseguem localizar parentes que estavam internados e morreram.
Como os sistemas de saúde e funerário entraram em colapso, cadáveres demoram a ser recolhidos. Há corpos abandonados por famílias em vias públicas. Estão à espera da força-tarefa composta por militares e policiais militares criada pelo governo de Lenín Moreno.
A prefeita Cynthia Viteri afirmou à agência AFP que “não há espaço nem para vivos, nem para mortos” nos hospitais e cemitérios da cidade.
6,7 mil mortes em 15 dias
A Universidade Johns Hopkins registra oficialmente 7,8 mil casos do novo coronavírus no Equador e “apenas” 402 mortes. Como o caos tomou conta do país, que está até com os serviços essenciais comprometidos, o Equador pode ser a nação com o maior número de mortos e casos subnotificados.
Nesta sexta-feira (16), o governo passou a reconhecer uma lacuna nos relatórios de mortes na província de Guaya e afirmou que, nos primeiros 15 dias de abril, 6.703 pessoas morreram na região, onde normalmente são registradas mil mortes por quinzena.
As autoridades não puderam determinar as causas de todas as mortes, mas deduzem que, além das mortes naturais, a maioria das vítimas são de Covid-19. O elevado número de mortes dos últimos 15 dias reforça o temor das subnotificações.
No domingo, a força-tarefa criada pelo governo anunciou ter recolhido 700 corpos em residências nas últimas três semanas em Guayaquil, capital da província de Guaya.
Os cemitérios precisaram utilizar escavadeiras para ajudar na abertura de valas comuns e agilizar o enterro de mortos pela doença.
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Outros relatos
A estudante de jornalismo brasileira Cristiane Guerrero Marques das Neves, de 23 anos, também mora em Guayaquil. Ela estava em férias na capital do Equador, Quito, e voltou para casa de avião dias após o anúncio do primeiro caso de Covid-19.
“No início, não se deu muita importância. Eu viajei para Quito nessa época. Cheguei aqui no dia 3 de março ,e o único controle que tinha no aeroporto era uma pessoa, numa mesinha, com material informativo”.
A universitária conta que a irmã de sua faxineira, que não está indo trabalhar por causa da pandemia, teve de colocar um corpo na rua, porque o recolhimento demorou muito.
O avô da melhor amiga de Cristiane morreu em 8 de abril: “Ele chegou a ir ao hospital , mas tinha uma fila gigante. A mulher dele achou que era mais perigoso esperar, porque também é idosa. Voltando para casa, ele faleceu. Por sorte, conseguiram um cemitério, mas só uma pessoa pode acompanhar o enterro”.
A evolução da doença no Equador
Como em todos os outros países, o coronavírus iniciou seu avanço de maneira muito discreta no Equador. Mas tudo indica que as autoridades demoraram demais para tomar as primeiras medidas necessárias de isolamento.
O primeiro caso foi oficialmente anunciado em 29 de fevereiro. Tratava-se de uma equatoriana que havia chegado a Guayaquil no dia 14 de fevereiro, vinda de Madri, na Espanha, um dos países mais afetados pela doença no mundo.
Antes de ser hospitalizada, a mulher teve contato com a família e, por isso, mais de 80 pessoas foram colocadas em observação por autoridades sanitárias. Ela morreu dias depois.
No período do carnaval, em pleno verão, o país como recebeu levas de turistas, muitos deles vindos da Europa para visitar a família no Equador. Além disso, nessa época os estudantes estão em férias e costumam viajar entre as províncias equatorianas.
Após o anúncio da primeira morte, o governo suspendeu “por precaução” grandes eventos em Guayaquil e na vizinha Babahoyo. As aulas foram suspensas e os bares e boates foram impedidos de funcionar.
A população começou, então, a pedir maior controle nos aeroportos. Em 11 de março, foi declarada emergência sanitária, e os viajantes que chegavam de 13 países passaram a ficar 14 dias em isolamento obrigatório.
A entrada de estrangeiros no Equador foi restrita no dia 16 de março, após os registros da segunda morte e de 28 casos confirmados de Covid-19.
Em 17 de março, o governo declarou estado de exceção nacional, com toque de recolher das 21h às 5h, suspensão do trabalho em vários setores, dentre eles os serviços de transporte entre as províncias e os voos domésticos.
Em 25 de março, o toque de recolher foi ampliado e passou a vigorar entre 14h e 5h. A circulação de veículos particulares também foi limitada e passou a ser organizada de acordo com o último número das placas dos automóveis.
(Imagens: AP/AFP/Reuters)