Gripe espanhola no Brasil também foi marcada pela negação e por boatos
História mostra como o roteiro da gripe espanhola no Brasil se assemelha ao que ocorre atualmente com o coronavírus: negação da gravidade da doença, disseminação de boatos e reações escapistas. O resultado foi catastrófico
via Lara Pinheiro, do portal Bem Estar
Antes de o navio inglês Demerara atracar no Brasil, em setembro de 1918, a gripe espanhola ainda era algo longínquo. Logo, não seria mais — e o que aconteceu a seguir teve um “roteiro” bastante parecido com o de hoje, quando o país tenta combater a Covid-19.
O medo da contaminação, a negação da gravidade da doença, a disseminação de boatos e a busca por culpados também apareceram. “Algumas coisas são características, digamos, que acontecem em todas as épocas. Por exemplo: procurar um bode expiatório, quem é o grande culpado – com comportamentos, inclusive, de violência”, explica Yara Nogueira Monteiro, historiadora em São Paulo.
Na Atenas antiga, no século 4, os estrangeiros foram culpados por espalhar uma doença até hoje não identificada. Na Idade Média, os judeus, os pacientes com hanseníase (então conhecida como lepra), e até as bruxas foram culpadas pela disseminação da peste. Durante a epidemia de febre amarela e malária nas cidades italianas do século 19, os responsáveis eram os espanhóis, alemães ou pessoas de outras cidades italianas (o país demorou a se unificar).
Já na época da gripe espanhola, como o Brasil tinha declarado guerra à Alemanha, começaram os rumores de que a doença era, na verdade, uma arma alemã. A afirmação chegou, inclusive, a ser veiculada na revista humorística “A Careta”, do Rio de Janeiro.
De forma semelhante, nesta pandemia, houve alegações de que o novo coronavírus (Sars-CoV-2) foi criado em um laboratório chinês, mas estudos apontam que o vírus tem origem na própria natureza.
“Também tem sempre uma trama. Não é um fenômeno que tem como origem a natureza – mas sim uma trama humana, política”, explica Claudio Bertolli Filho, professor aposentado da Unesp que também contribuiu com o livro “Doenças e Medos Sociais”.
Na época da gripe, diz Bertolli, logo no início, a noção geral era de que ela estava longe. “Quando começa a se aproximar, começa a ter alguns discursos: aqui não chega, porque nós somos diferentes. Quando ela chega, a primeira coisa que se diz é ‘é uma gripezinha'”, afirma o historiador.
Quando o Demerara atracou no Rio de Janeiro (depois de passar por Recife e Salvador), as autoridades sanitárias chegaram a negar a possibilidade de que houvesse infectados pela nova gripe a bordo, explica Bertolli. Elas disseram à população que se tratava de uma gripe comum – e que o sistema de saúde estava preparado para atender os doentes.
“Há uma garantia inicial de que a doença não vai ganhar grandes proporções aqui”, explica. Segundo o historiador, existia, em São Paulo, uma grande confiança na medicina como sendo capaz de resolver os principais problemas de saúde — e os serviços municipais de atendimento eram elogiados.
Já no Rio de Janeiro havia medo e preocupação das pessoas com as medidas adotadas pelas autoridades sanitárias para combater a doença e a intervenção delas na rotina. A doença, que a princípio acometia os mais idosos, ficou conhecida como “limpa-velhos”, explicou a historiadora Adriana da Costa Goulart, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em um artigo publicado na revista “História, Ciência e Saúde”, da Fiocruz, em 2005.
“Historicamente, epidemias e ideologias se difundem da mesma forma, proporcionando o aparecimento de conflitos sociais e de resistência ao intervencionismo e às tentativas de medicalização da sociedade”, explicou Goulart.
Assim como na pandemia de hoje, as pessoas foram recomendadas a evitar aglomerações e lugares fechados e manter as mãos limpas. Lugares públicos também foram fechados.
Mesmo assim, as pessoas adoeceram e morreram muito rápido. Em São Paulo, no final de outubro de 1918, cerca de 15 dias depois dos registros dos primeiros casos, os serviços de saúde – ao contrário do que tinha sido afirmado pelas autoridades – já não tinham mais condições de atender as pessoas.
“São Paulo tinha 528 mil habitantes. No dia 1º de novembro, só num dia, houve quase 8 mil novos doentes”, explica Liane Maria Bertucci, professora de História da Educação na Universidade Federal do Paraná (UFPR) que estudou a gripe espanhola em São Paulo.
Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram na epidemia de 1918 – os números para o mundo vão de 50 a 100 milhões. No Brasil, estima-se que 35 mil pessoas morreram, 15 mil delas só no Rio de Janeiro.
Na pandemia de Covid-19, até esta quinta-feira (30), 5.901 pessoas haviam morrido pela doença, segundo dados do Ministério da Saúde. Há um mês, no dia 31 de março, eram 201 mortes.
“Com a pandemia avançando, nós temos em todo momento o medo. Todo medo é o medo da morte. A morte pode se anunciar a qualquer um, então temos mais atitudes egoístas de nos fecharmos, de não ajudarmos ninguém”, explica Claudio Bertolli.
“O medo é pensado pela historiografia como a ausência de segurança. A rotina, a repetição de atos e processos diários é que nos garante segurança. Nós estamos isolados, coisa que não é comum – isso já cria toda a base do medo”, pondera o historiador.
“No caso nosso desse medo do coronavírus, a epidemia rompe laços muito fortes”, completa Liane Bertucci, da UFPR.
“Nós mudamos, hoje, o nosso cotidiano de maneira brutal. Você acaba não vendo mais as pessoas, mesmo quando a gente tem esses meios de comunicação – pense quando não tinha isso. Em 1918, não tinha nem rádio ainda, então era uma coisa muito terrível. Era muito comum visitar parentes, amigos, principalmente quando estavam doentes”, lembra a historiadora.
Para o psicanalista e professor da USP Christian Dunker, o medo, na pandemia de Covid-19, é visto como uma fraqueza moral por alguns. Isso levou, no cenário brasileiro, a um movimento muito forte de negação da pandemia de Covid-19, encabeçado pelo próprio presidente da República, Jair Bolsonaro.
“Em função da divisão social e da polarização, é difícil para a gente entender que possa existir um inimigo invisível que não seja um inimigo intencional. Isso gerou uma atitude de negação”, afirma.
Em um segundo momento, explica Dunker, essa negação foi instrumentalizada politicamente. “Porque aí, negando juntos, a negação ganha mais força”, afirma.
A terceira etapa, diz, é a sensação de invulnerabilidade, de achar que “olha, mas, no fundo, eu sou uma pessoa especial, eu sou uma pessoa protegida, não sou como os outros. Isso volta na teoria conspiratória”, conclui.
Outros registros da gripe espanhola: