Canção com todos: a música na distopia-Brasil
Luís Felipe Machado de Genaro*, Pragmatismo
Político
Em tempos difíceis como o que vivemos atualmente, principalmente no Brasil, enfrentando inúmeros inimigos mortais, como um vírus invisível, assim como inimigos políticos e econômicos dos mais diversos, existem poucas coisas que parecem nos acalentar frente a angústia e o desespero. A arte é uma delas. Arte aqui no sentido amplo, em todos os seus aspectos.
A música, em particular a Música Popular Brasileira (que aqui flexibilizo o seu significado histórico e acrescento a ‘Nova MPB’, o Funk, os novos sambas, entre tantos outros ritmos que escancaram o verdadeiro Brasil) tem nos presenteado quase que diariamente. Se antes poderíamos escutar Gilberto Gil e Milton Nascimento apenas em grandes teatros, agora as coisas mudaram, ao menos que por um breve período.
Escrevo o “verdadeiro Brasil” por que muitos o querem distante, afundado na lama de uma nação que abraça rapidamente o fascismo, onde, como nos alertou Umberto Eco, tem pavor quando se pronuncia a palavra Cultura. Não muito difícil de se entender a razão para que não tenhamos mais um Ministério com diretrizes e fundos, mas uma secretaria vazia e sucateada, além de ex-secretários que só não foram mais cômicos (no pior sentido) pela tragédia escancarada que evidenciaram. Vale lembrar que para Eco, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas.
Nestes tempos sombrios onde a internet e as redes sociais prestam enorme desserviço para grande parcela da população brasileira com os seus grandes “conglomerados” de mentiras, falsidades, xingamentos e toda a sorte de absurdos, vimos que muitas cantoras e cantores, interpretes dos mais diversos e músicos das mais diferentes vertentes iniciaram o impensável: pequenos shows em suas próprias residências para satisfazer seus fãs.
Daí o acalento. Sentar-se isolado, ou com a família ou mesmo com quem ama ao lado para assistir a uma “live” tem se tornado recorrente. E não somente. Nestes mesmos tempos onde o isolamento parece interminável, o número de mortes aumenta devido a pandemia e ao desgoverno, as notícias são cada vez piores e a música não pode mais ser ouvida em bares e restaurantes, apreciar álbuns de cantoras e cantores antigos e outros recém-lançados parece diminuir o desespero que nos toma conta.
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Genaro
O Brasil é rico, muito rico, me disse alguém que muito amo. Estávamos falando de música, escutando a um show e, entre um comentário ou outro, refletindo que, de fato, somos mesmo. A História musical brasileira é uma das mais ricas do mundo e somos um país verdadeiramente privilegiado. Me recordo do livro dos professores Luciana Worms e Wellington Borges Costa, “Brasil Século XX: Ao pé da letra da canção popular”, onde narram a história do Brasil, este país onde mais se assemelha a um moinho de gastar gentes que qualquer outra coisa, através dos ritmos, acordes, melodias, álbuns e canções. Para cada momento histórico trágico, o surgimento de sons capazes de transformar a realidade com potências inigualáveis.
Evidente que a distopia-Brasil de Jair Bolsonaro não conseguirá destruir a cultura, muito menos calar as vozes geniais de tantos que surgiram e surgem diariamente nas comunidades do Rio, nos recantos e becos de São Paulo, em Minas, no Nordeste e em todas as outras regiões de um país imerso na maior riqueza musical já vista – e ouvida.
Irrita os senhores engravatados desta nova era vozes como as da saudosa Beth Carvalho, que sempre reclamou do preço do feijão e do pequeno salário mínimo dos brasileiros; a de Zeca Pagodinho, que nunca se deixou abalar e enchia o seu quintal com a maior quantidade possível de preciosidades; Gilberto Gil, ex-Ministro de Lula que há alguns dias fez uma série de “lives”, uma delas, inclusive, homenageando canções nordestinas; a voz de Milton Nascimento, que ecoa dizendo que sonhos não envelhecem e nunca irão envelhecer; ou mesmo a de Cartola, outro saudoso, cantando as dores populares dos morros; assim como as de tantas e tantos que nos removem da realidade, mesmo que por poucas horas, seja através de um breve show residencial ou em uma velha vitrola e em canais no YouTube.
Mesmo a Educação e a Cultura como alvos certos do Brasil-catástrofe de Bolsonaro, nada irá calar os novos e os velhos cantores e interpretes que sempre deixaram a sua riqueza musical fluir, muitas delas imbuídas de forte crítica social, política e econômica. Não pode e não haverá mais “Cálices”. Não ocorreu na ditadura de 64 e não ocorrerá agora. Que cantem todos, cantem forte, pois “o sol há de brilhar mais uma vez/A luz há de chegar aos corações/O mal será queimada a semente”.
E sim, o amor será eterno novamente.
*Luís Felipe Machado de Genaro é historiador, mestre em história
pela UFPR e professor da rede municipal de Itararé