Como tudo que envolve a História, nada funciona sem intenção, nesse caso, seria reconhecer que a "Cuba livre" foi amplamente alcançada por um negro que não era apenas um combatente
Camila Koenigstein* e Eduardo Bonzatto*
A colonização, sentido de expansão do modelo eurocêntrico de ver o mundo, só foi bem sucedida e perene porque transferiu gerações de humanos escravizados da África para a América. Essa base genealógica carregou energia mutante até os dias de hoje e ainda promete nutrir suas raízes enquanto o sistema funcionar, já que é uma forma de privilégios para muito além de um modo de opressão.
Por motivos preponderantemente religiosos, homens e mulheres que tinham a cor da pele adequada ao mito bíblico de Cam cruzaram o grande mar para vivenciar as complexidades ameríndias.
Se é verdade que o nascimento do capitalismo se deve aos vínculos apolíneos protestantes, também o é que sua economia política só foi possível pelas práticas dionisíacas das escrituras jesuítas, oriundas da península católica.
A complexidade que esse deslocamento massivo impôs ao mundo americano primeiramente, e ao mundo todo nos 500 anos seguintes precisa ser esmiuçada sem os adjetivos doloridos, usados há tanto tempo, pois nunca esses homens e mulheres deixaram escapar sua humanidade, jamis, por mais que os teóricos insistam nessa ideia de coisificação.
Nesse sentido, a experiência cubana é de uma grandiosidade ímpar e merece ser contada.
O fim do século XVIII e início do século XIX foram marcados por grandes mudanças políticas, sociológicas e ideológicas por todo o mundo.
Com a guerra de Independência norte americana (1775-1783), seguida pela Revolução Francesa (1789-1799) e Revolução haitiana (1791-1804), e posteriormente a eclosão da guerra de Secessão (1861-1965), temos alterações de valores que exigiam uma “mudança” de mentalidade nas classes dominantes.
Com isso, queremos dizer que as revoluções surgiram através dos ideais. A ilustração gerou determinados princípios revolucionários no seu tempo, mas é importante entender que não foi somente uma experiência europeia; nos dois lados do Atlântico, novas valores surgiram.
Como nos lo ha demostrado la historiadora María Portuondo […], la investigación de la novedad tiene una larga tradición en el imperio español. La edad de la iluminación coincidió con el aumento de las ciencias biológicas, con notables avances en química y física, hasta una profunda alteración en las mentalidades convencionales. Entre 1770 y 1840 una plétora de nuevas invenciones en tecnología de vapor, en las comunicaciones telegráficas y en ingeniería mecánica establecieron las bases para lo que a veces se ha llamado “la edad de la revolución” […] Entre 1776 y 1837 se produjeron cambios políticos, sociales y económicos significativos en todo el Caribe en particular y entre las Américas en general, cambios que transformarán para siempre la historia del mundo. (Knight, 2011, p. 2)
No entanto, Cuba possuía uma elite crioula com características muito particulares, ligada a uma experiência singular em relação ao tráfico de escravos, o que originou uma classe de homens chamados sacarocratas. Homens ricos como nunca visto no mundo colonial, exatamente pela abundância do açúcar na região.
Portanto, a independência cubana não era conveniente, pois, ao olhar para a experiência do Haiti, país localizado geograficamente muito perto de Cuba, eles logo perceberam que poderia emergir um processo semelhante e gerar uma insurreição de negros. Por isso, era conveniente manter uma certa “subalternidade” a Espanha.
O medo de perder os escravos, a riqueza gerada pela produção de açúcar e, sobretudo, o pavor de ser uma nação composta majoritariamente por negro fez com que até os homens ditos “progressistas”, interessados na independência, deixassem a questão da independência e da escravidão no ostracismo. Segundo Antônio Saco: “a única raça com a qual todos os homens brancos sensíveis devem lidar era a formada pela raça branca”.
No entanto, com o desenvolvimento do conflito entre Cuba e Espanha, com diversos setores sociais cada vez mais envolvidos, a questão da raça se torna secundária.
Segundo Ada Ferrer, há uma mudança de mentalidade e o início de um discurso antirracista que começou a florescer na primeira rebelião (1868-1878) e continuou até a última, ou seja: a adesão de negros livres e libertos era um fato singular no continente, onde formaram um exército multirracial, muitos atingindo graus de capitães, coronéis e generais. Com isso, formou-se algo particular que vai além da presença de homens negros no conflito.
Podemos estabelecer aqui algumas comparações: durante a Guerra de Secessão, nos Estados Unidos, houve participação de homens negros, muitos participando pelas promessas de integração, no entanto, esse fato não foi suficiente para interromper a segregação do negro na sociedade norte-americana, tampouco proporcionou algum sentimento de pertencimento, ao contrário, sofreram todo tipo de hostilidade, principalmente no sul do país, enquanto no norte fortaleceu uma classe organicamente coesa e relativamente autônoma.
Enquanto em Cuba, 40% dos oficiais eram homens de cor, o que não quer dizer que não houve racismo nesse período na ilha, principalmente quando o movimento de libertação começou, alguns escravos decidiram diante discriminação sofrida retornar aos seus antigos senhores (Ramirez, 2009, p.121).
Mas, a integração do negro na sociedade cubana partiu de uma luta por quebra de paradigmas, e estruturas racistas presentes em seus mais variados espaços, no entanto, o negro foi inicialmente integrado por diversas contingências. Por mais de trinta anos, houve um campo de conflito pela libertação, mas também contra o racismo.
Em Cuba, lutaram para deixar de ser o sujeito objetivado e tornar-se parte integrante não apenas do movimento de independência, mas de reconhecimento como indivíduo cubano, isso gerou singularidade no processo cubano de integração.
Tal atitude perdurou até a última guerra de independência entre 1895-1898. Posteriormente, em 1912, através da Guerra das Raças, iniciado pelo Partido Independiente de Color, ainda nos primórdios do período republicano, marcou definitivamente a postura combativa e lúcida do negro em Cuba.
Antonio Maceo e a raça
José Antonio de la Caridad Maceo y Grajales, ficou conhecido na história como “Titã de bronze”. Nasceu em Santiago de Cuba em 1825. Filho de pai venezuelano e mãe dominicana que emigram a Cuba durante a Guerra de Independência da Venezuela. Ele teve a inspiração de se juntar ao exército da independência em sua mãe, Mariana Grajales, que colocou todas as crianças no mesmo caminho, a luta pela libertação de Cuba.
Já na fase adulta, ele se juntou ao exército de Carlos Manuel Céspedes (1819 -1974) na Primeira Guerra da Independência (1895-1998), no grupo Mambise, ainda como soldado, mas logo encontrou resistência devido ao racismo existente no grupo, racismo que ele sempre combateu, no entanto, sofreu várias tentativas de difamações dentro do exército.
Através de sua bravura e maneira de lidar com preconceitos, Maceo rapidamente alcançou o mais alto nível dentro da corporação, juntando-se a Máximo Gómez (1836-1905) até então um dos homens mais importantes do grupo Mambise, tornando-se general.
Quando se fala do major-general Antonio Maceo Grajales, o assunto da cor emerge imediatamente. Não porque o herói se referisse a esse problema continuamente, o que somente fazia em circunstâncias necessárias, mas porque, como paradigma da grande massa de negros e mulatos insurgentes, a questão racial o afetava em todos os aspectos.
No entanto, Maceo demonstrava, na maioria das vezes, estar acima do preconceito racial. Ele foi capaz de localizar e avaliar, na medida do possível, qual era o local mais apropriado para os racistas: ignorá-los. Equanimidade e compaixão que ele consegue alcançar graças à sua inteligência máxima e à prioridade de defender o país sobre sua própria personalidade e sobre qualquer conflito sobreposto.
A última frase citada é de Martí, que coloca a questão da nação como mais importante do que a questão da raça, no entanto, como veremos mais adiante, a compreensão do problema racial nunca foi examinada em profundidade pelos homens brancos que faziam parte do exército.
O mito “nacional” sempre ocultava o problema do racismo na ilha, mesmo quando a massa do exército era formada por negros libertos ou escapados, o que também não significava a passividade do negro em relação ao racismo. Se por um lado o tema da coisificação esteja presente em relação ao negro, no caso de Cuba, houve processos, assim como no Haiti, que desenvolveram certas singularidades do negro mesmo escravizado no que diz respeito à subordinação.
Mas, além de uma história singular, marcada por grandes eventos, e por ter participado das três guerras pela independência, ou seja, trinta anos de luta, a vida de Maceo encontrou a questão da raça em vários momentos e talvez como expõe Maria Pomelier, ele próprio poderia ser considerado o pai fundador de um novo Estado. Um Estado que nasceu através do conceito de cubanidade do sujeito nacional, conceito resgatado posteriormente durante a revolução de 1959.
Em outras palavras, Maceo é considerado um grande herói cubano, que é simbolicamente é importante, mas suas ideias sobre a sociedade e a questão da raça são pouco ou nada conhecidas. Seu amor pelos princípios de liberdade e igualdade sempre foram força motriz de sua luta, mas ele também estava ciente da subalternidade dos negros na sociedade cubana, e da luta e dificuldades de integração dos mesmos, tanto que se opôs fortemente ao Tratado de Zanjón (1878) [1].
Que tiene que esperar nuestra raza de una insurrección blanca triunfante en Cuba? La expulsión o el exterminio? Si hubiese triunfado lo que sucumbio en Zajon? Cuál sería hoy nuestras suerte? Como nos ha tratado el criollo? Con el látigo y con el cepo y grillete?
<> Se ha pedido siempre en los ingenios. Fierro y todo, como lo es su pueblo, tiene corazón y compadecia nuestra desgracia, a nuestras mujeres y a nuestros hijos. Por los demás, los antecedentes históricos forman el proceso del criollo como importador de la esclavitud.
Com esta passagem, a consciência de Maceo em relação à raça e a situação negra na guerra é evidente, sábio, compreendia que uma vez que o tratado de Zanjón tivesse sido aceito seria concretização da ausência do negro como sujeito político na ilha.
A oposição ao acordo já era um gesto de oposição a toda a situação de opressão do povo negro, uma vez que o tratado não alterava estruturas que de fato modificariam à realidade cubana.
A Revolução Cubana o esqueceu, afinal seu pensamento não era pauta dos revolucionários sobre esse tema espinhoso.
Maceo marcou a história, mas pouco se fala sobre seu pensamento avançado e libertário. Nos anais da história, Maceo foi deixado como um homem dotado de força e coragem físicas. Já, José Martí (1953-1895), se constitui como a voz moral e intelectual da revolução.
Como tudo que envolve a História, nada funciona sem intenção, nesse caso, seria reconhecer que a “Cuba livre” foi amplamente alcançada por um negro que não era apenas um combatente, foi um feito impensável para os homens da época que, segundo Walterio Carbonell, permaneceu presente, talvez até hoje.
Me pergunto, os cubanos, homens e mulheres negras, acreditaram na versão oficial? Porque não há outra!
Citação:
[1] Manuscrito que recoge las bases para poner fin a la Guerra de los Diez Años (1868-1878), suscrito por una parte de los dirigentes políticos y militares cubanos, sin que se garantizara el cumplimiento de ninguno de los dos principales objetivos de la contienda: alcanzar la independencia y eliminar la esclavitud. Por tal razón, constituyó una capitulación. Aceptado por la mayoría de los cubanos en armas, con excepción de unos pocos jefes y oficiales, entre los que sobresalió Antonio Maceo, quien transformó la capitulación del Zanjón en tregua fecunda con su inmortal Protesta de Baraguá.
*Camila Koenigstein é historiadora especializada em sociopsicologia e *Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
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