Forças do Estado a outra face da pandemia
O perigo da extensão do discurso sanitarista é o aumento da violência policial para legitimar e exercer liberdade sobre os corpos vulneráveis
Camila Koenigstein*
Com a morte de George Floyd, senhor afro-americano assassinado em 25 de maio, vimos uma onda de protestos que se espalhou por todo o mundo e principalmente países que compõem o continente.
De repente questões pontuais e geralmente sem grande impacto começaram a aparecer, apontando para a realidade cruel existente na América.
Podemos conjecturar que a pandemia de Covid-19, juntamente com a falta de recursos para cuidar da população de maneira adequada, desvelou por completo a situação de negros, mulheres e indígenas, expondo as diversas formas de violência praticadas.
Dentro desse contexto, o Estado, nos mais variados países, colocou a polícia e o Exército nas ruas, usando como justificativa o uso de tais forças para garantir o cumprimento da quarentena e a segurança geral da população.
Em um continente que sempre teve sérios problemas relacionados com a truculência militar e policial, que vão desde ditaduras até números absurdos de mortes pelas mãos da polícia e do Exército, tais medidas geram preocupação.
Em 20 de maio, um vídeo viralizou na internet após um senhor colombiano, vendedor ambulante, ser brutalmente agredido por policiais por descumprimento da quarentena. No vídeo, um dos agentes detém o trabalhador por trás, com o braço em seu pescoço, causando asfixia.
O homem, completamente rendido à situação, já com o rosto machucado e sangrando, só pede auxílio e tenta se soltar para recolher sua mercadoria.
Esto produce profunda indignación, es repudiable que a este anciano que sale a trabajar para sobrevivir la @PoliciaColombia lo trate de esta manera, en lugar de darle asistencia, lo golpean y arrestan. Sr @IvanDuque Sra @ClaudiaLopez ustedes deben impedir que esto se repita. pic.twitter.com/t3L6jXIApz
— Luis Guillermo Pérez (@LuisGPerezCasas) May 20, 2020
O vídeo, extremamente violento, mostra aspectos da sociedade que se imbricam na pandemia, não permitindo mais a separação entre violência estatal e proteção exigida dentro do contexto de pandemia.
No México, no município de Ixtlahuacán de los Membrillos, sul de Guadalajara, o pedreiro Giovanni López foi preso por não estar com máscara. Algumas horas depois, seu corpo foi devolvido aos familiares. Peritos disseram que a causa da morte foi traumatismo cranioencefálico. A fiscalía nega que o motivo da prisão tenha sido o não cumprimento do uso de máscara, mas sim atitude agressiva com os policiais.
Segundo a Forbes México, os resultados da investigação a cargo do Ministério Público determinarão se existiu responsabilidade dos servidores públicos na morte de Giovanni López.
Mexicanos lançaram o hashtag JustiçaParaGiovanni, contando com o apoio de personalidades famosas. O diretor Guillermo Del Toro foi enfático ao afirmar que a morte de Giovanni foi fruto da total loucura relacionada à saúde da população.
Giovanni López, albañil de 30 años, fue golpeado por policías de Jalisco por no portar cubrebocas, murió a causa de un traumatismo craneoencefálico, tenía un balazo en el pie.
Este es el estado de terror y persecución que instala @EnriqueAlfaroR.#JusticiaParaGiovanni!! pic.twitter.com/DYlU2J7MV3
— Arq Michael Oviedo (@Mike_Oviedo) June 3, 2020
Na Argentina, a província do Chaco sofre diversas mazelas sociais: abandono por parte do poder estatal, epidemia de dengue, truculência policial, descaso e racismo com população indígena, e, agora, o aumento do número de casos de Covid-19.
Em 2 de junho, uma família teve a casa invadida por seis policiais, que arrastaram pelo chão a filha de 16 anos do casal. Os outros filhos foram golpeados contra a parede. Um policial fez disparos com uma escopeta e apontou a arma para o avô das crianças, o que provocou medo e gritaria.
Os agentes decidiram levar os meninos na viatura e mais golpes foram desferidos – além disso, pertences dos moradores foram jogados na rua. Enquanto a cena dantesca ocorria, um indivíduo gritou: “Índios, todos índios infectados, todos mal acostumados”. Foram liberados ao meio-dia, o que mostrou que o ato foi somente um “capricho” daqueles que têm o poder sobre a vida ou a morte dos cidadãos.
No Chile, no dia 1º de maio, na comuna Castro Chiloé, um senhor, denominado H.J.M.O, foi brutalmente agredido quando acompanhava uma pessoa cadeirante. O fato de estar na rua durante o toque de recolher gerou uma situação completamente caótica. Segundo a vítima, os policiais golpearam sua coluna, cabeça e rosto, deixando-o em estado de semi-inconsciência, além de produzirem hematomas e a perda de visão temporária. O caso está sendo investigado pelo Instituto Nacional de Derechos Humanos (INDH).
No Peru, mesmo em uma realidade de fome e abandono da população mais carente, principalmente a indígena, o governo instituiu o toque de recolher e o uso da força policial e do Exército para garantir a segurança sanitária.
No Equador, a ministra de Interior, Maria Paula Romo, deu carta aberta caso fosse necessário a utilização de mecanismos de violência como “estratégia” para evitar conflitos entre diferentes manifestações populares.
Los abusos policiales y militares, que siempre permanecieron en el fondo de la secuencia cual ornamento en el que ya nadie repara, toman en las calles petrificadas por el estado de excepción un rol protagónico que ni el soberano del cinismo más obsceno podría ya ignorar. Trabajadorxs que han de salir a las calles por culpa de las condiciones de un sistema que pretende hacer de la enajenación el único medio de supervivencia, motorizadxs que cargan con los recados de quienes van acostumbrándose a la maravillosa vida en que unx dispone, de su comida calientita en la puerta de su casa – ¡en tan solo unos clics!- esquivan, entre vallas, peatones, groserías –a menudo cargadas de una profunda e incomprensible xenofobia- y alguna que otra mirada de desdén, las coimas, impedimentos y maltratos propinados por la autoridad.
No Brasil, o quadro é de grande complexidade, a polarização existente em relação à pandemia criou uma mola propulsora de truculência policial. Se por um lado os adeptos do fim da quarentena são reconhecidos pela agressividade, por outro os cidadãos contrários à flexibilização do isolamento pouco entendem a realidade daqueles que necessitam sair às ruas para trabalhar. Nesse caso, o clima de repressão recai sobre a população negra e pobre, ou seja, os que mais necessitam da renda salarial.
Só entre março e abril deste ano, 290 pessoas foram mortas no Rio de Janeiro através de intervenções policiais, ainda que parte da população esteja isolada em casa por recomendação das autoridades, além da diminuição de delitos. Essa cifra de vítimas é o equivalente a um terço dos falecidos pelas mãos da polícia estadunidense em 2019. Não só no Rio de Janeiro os números são alarmantes – em São Paulo, morreram de janeiro a março 255 pessoas pelas mãos do Estado.
O vazio das ruas em todo o continente tem gerado um sentimento de poder muito maior dentro das forças armadas e policiais, que em condições normais já atuavam com violência desmedida, muitas vezes matando jovens, em sua maioria negros e indígenas.
Geralmente as notícias que recebemos se relacionam à morte de crianças nas zonas periféricas. Há, no entanto, uma quantidade gigantesca de mortes ocultas, ainda mais nesse momento em que todos os holofotes estão direcionados em uma única direção, o que cria o imaginário de que a polícia assegura proteção, quando na verdade é responsável por parte considerável dos homicídios que ocorrem nas áreas mais carentes.
O cenário da pandemia agravou ainda mais a tensão e o medo. Tanto o governo federal quanto alguns governadores atuam através da opressão, cada qual defendendo supostamente os interesses da população.
Quando olhamos, ainda que brevemente, a situação do continente, nós nos damos conta de que o problema da pandemia é só mais um componente dentro do caótico mundo de agressividade na América. Um continente marcado fortemente pelos resíduos do período colonial, que deixou como herança o racismo, o classismo e a perversidade desmedida, que agora é exercida em nome da preservação de alguns em detrimento de outros.
Neste momento, há uma linha tênue entre proteção e opressão. O perigo da extensão do discurso sanitarista é o aumento da violência policial para legitimar e exercer liberdade sobre os corpos vulneráveis, dentro desse contexto há o fortalecimento de práticas enfurecidas alimentadas pelo medo do contágio, sem medir consequências e os danos à população. É necessário evitar que a síndrome de Simão Bacamarte se torne normal, mas, infelizmente, sentimos que tal espectro já está rondando todo o continente.
Fontes:
https://www.washingtonpost.com/graphics/2019/national/police-shootings-2019/
http://www.lapoderosa.org.ar/2020/06/el-chaco-esta-gritando-escuchen/
http://www.semana.com/nacion/articulo/video-de-agresion-de-la-policia-a-anciano-en-bogota/672787
*Camila Koenigstein é graduada em História, pela Pontifícia Universidade Católica – SP, pós graduada em Sociopsicologia pela Fundação de Sociologia e Política – SP e mestranda em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina y Caribe pela Universidade de Buenos Aires (UBA).