Seguir o roteiro Global é a certeza do fracasso. A empresa nem como veículo de comunicação é o meio mais apropriado.
Anderson Pires*
A Globo News promoveu uma entrevista com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os ex-ministros Ciro Gomes e Marina Silva, conduzida pela jornalista Miriam Leitão. Na pauta uma análise da conjuntura nacional e a necessidade de que seja feito um movimento em defesa pela democracia, capaz de combater o governo autoritário de Jair Bolsonaro.
Nas falas, os entrevistados ressaltaram a necessidade de formação de uma frente ampla para contrapor o avanço de medidas antidemocráticas e impedir que o atual presidente dê continuidade ao seu governo. Na ocasião todos disseram estar dispostos a superar diferenças e, em muitos momentos, ate alguma rasgação de seda fez parte do clima amistoso.
Indiretamente, a posição dos presentes era uma crítica a postura do PT e de Lula, que disse não estar disposto a participar do movimento proposto. Para Lula, não pode existir defesa da democracia sem garantia de direitos individuais e a reparação dos processos que implicaram na sua condenação e no golpe sofrido pela Presidente Dilma.
A predisposição dos convidados à formação de uma frente é mais que natural. Estão ocupando o papel político de oposição a Bolsonaro e preparam o terreno para o lançamento de candidatura, que seja a alternativa no campo democrático. O que parece esquisito é a Globo estar inserida nesse contexto como porta-voz e condutora de uma suposta proposta de unidade em prol da democracia para se opor a Bolsonaro.
Dois aspectos precisam ser considerados. A Globo como veículo não pode agir como integrante de frentes partidárias, principalmente, quando escolhe quem pode participar. Na medida que faz isso, constrói uma versão de que a unidade para derrotar Bolsonaro pode ser feita sem a participação de parcela significativa da esquerda, no caso o PT, ao qual sempre portou-se como opositora. Além disso, tenta legitimar lideranças como o ex-presidente FHC, que faz parte do PSDB, um dos partidos mais féis ao Governo.
Esse modelo de construir o roteiro para que os atores cumpram os papeis que considerar apropriados, já foi usado pela empresa em diversos momentos da história, com Tancredo Neves, na eleição de Collor de Mello e no impeachment de Dilma. Talvez, a Globo continue a acreditar que pode conduzir o país conforme seus interesses particulares e, para isso, recorre a fórmulas antigas de edição da realidade política.
Também, é estranho FHC ser padrinho de algo que não tem capacidade de promover nem entre seus correligionários. A Globo com seu amor eterno aos neoliberais tucanos, alimenta a vaidade de quem já foi tratado como Príncipe da Sociologia Brasileira e, assim, tenta dar pompa a sua nova empreitada. Fica latente a tentativa de derrubar Bolsonaro, porque seu modelo de Governo não a serve, mas também querem levar por empuxo o PT junto e enterrar o Lula.
Marina e Ciro que carregam mais mágoas do PT que o bolsonarista mais raivoso, fazem olhar de paisagem e surfam na onda que a Globo tenta impulsionar. Paira na entrevista um certo cheiro de mofo. Afinal, tanto o canal de TV, como a jornalista e os entrevistados protagonizam a cena política nos últimos 30 anos e, muitas vezes, portam-se como não tivessem qualquer responsabilidade com a conjuntura atual. Além disso, parecem estar desconectados da percepção que o público tem da política e, assim, não contextualizam de maneira devida a parcela enorme que não demonstra qualquer interesse.
Erram na análise, produzem um conteúdo cheio de próprias verdades, estabelecem quem deve ser o protagonista a partir dos seus grupos políticos, excluem parcelas importantes da esquerda, enquanto a população se organiza de forma desorganizada, sem abrir brecha alguma para esses agentes políticos assumirem a função de líder.
Seguir o roteiro Global é a certeza do fracasso. A empresa nem como veículo de comunicação é o meio mais apropriado. Entre os que precisam ser trazidos para o debate, não é referência. Basta comparar com alguns youtubers, que têm muitas vezes a audiência da Globo News e conseguem chegar a milhões de pessoas alheias ao debate dos políticos.
O que se pode extrair de mais positivo na entrevista, é o consenso da necessidade de formamos uma frente ampla em defesa da democracia. Isso é imprescindível. Não se brinca com o fascismo. Mais urgente ainda é entender que esse movimento precisa ter a participação de quem realmente pode influenciar o público. Personalidades que não têm qualquer referência nas velhas estruturas políticas e de comunicação.
Se o PT tem questionamentos sobre a proposta, é realmente a hora de esquecer o mimimi, como diz Ciro Gomes, e tentar trazê-lo. Não acredito que as diferenças serão resolvidas, mas precisarão ser adiadas. Nenhuma das partes é majoritária hoje. Os descontentes que preferem ouvir o Mano Brown ou o Felipe Neto são muito mais representativos e não têm qualquer responsabilidade com as pendengas existentes.
Contudo, acredito que algumas bandeiras precisam ser levantadas para unificar todos esses pedaços. O sistema político brasileiro precisa ser reformado. As últimas tentativas de reformas não representaram qualquer avanço. Um sistema que ainda permite que Roberto Jeferson e Waldemar da Costa Neto sejam presidentes de partidos de forma vitalícia, não tem condições de mudar padrões. Como podemos debater democracia, quando quase todos os partidos seguem estatutos que são mais antidemocráticos que o patriarcado?
Também é necessário uma discussão sobre a reforma administrativa e a apropriação que o Estado Brasileiro sofreu por alguns segmentos sociais, com a chancela constitucional e o mecanismo dos concursos. Num país tão desigual, transformaram em legal a dominação de classe e a desigualdade. Afinal, ninguém com o mínimo de bom senso vai dizer que existe isonomia concorrencial num Brasil onde muitos vão para escola motivados pela comida.
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Uma frente democrática que não tenha como pauta temas que promovam redução da desigualdade e o do autoritarismo praticado por categorias do Estado, pode ser ainda mais perigosa, porque corre o risco de só criminalizar mais a política e os políticos. Com todos os problemas que possam existir na política, é a forma mais legitima de condução da sociedade. Não pode o juiz, o procurador ou o policial continuarem acreditando que são legítimos condutores da democracia baseados na moral que carregam.
Feito isso, acredito que seja possível uma aliança tática consequente. Teremos uma pauta que será mais importante que a discussão sobre pendências e diferenças. A frente será ampla em partidos e representativa socialmente. Vamos poder caminhar sem a necessidade de um roteiro escrito pela Globo, nem com a figura de um patrono que, por conveniência, foi conivente com o autoritarismo. Se querem participar, que seja no papel de aliados da democracia. Não queremos mais o protagonismo seletivo, que escolhe quem deve ou não ter seus direitos respeitados. Entretanto, não precisamos ser tão radicais como Brizola, que chegou a dizer: “Se a Rede Globo for a favor, somos contra. Se for contra, somos a favor”. Porém, não custa lembrar.
*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.
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