Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Eis que esta pandemia veio pra contrariar algumas premissas humanitárias e sociais que tínhamos. Quem puder, não vá de ônibus, use seu egocêntrico carro. Aliás, quem puder, não vá. Em indo, tenha atitudes esnobes, passe longe dos demais. Não aperte a mão de ninguém. Cumprimente apenas com um bom-dia abafado pela máscara. Não tome os parques e praças, símbolos das cidades. Muito menos para protestos antidemocracia. E, claro, não abrace ninguém.
Os abraços são uma relação humana complexa. Há casais que fazem sexo, mas têm dificuldade de se abraçar. O sexo pro ser humano, como escreveu Luis Fernando Veríssimo, tem manual de instrução. O abraço não. Não se pode saber quanto tempo dura um abraço. Sentimos quando devemos fazer sexo, mas é difícil saber em que situações cabem um abraço. E não sabemos quanto tempo dura um abraço. Não vou fazer a pesquisa, mas certamente há respostas no Google sobre quantos minutos (ou segundos? Tô meio por fora) deve durar a transa. Provavelmente mais difícil será achar a resposta de quanto tempo deve durar o abraço para que ambos os envolvidos saiam satisfeitos.
Mesmo não estando pelados quando fizemos, o abraço pode ser constrangedor ou embaraçoso. É uma troca de energia intensa. Podem ser segundos intermináveis, como foi para Bolsonaro quando Abraham Weintraub solicitou essa troca de energia ao se despedir do cargo que estava deixando, o de Ministro da Educação. Os motivos para o visível desconforto do Presidente podem ser vários, desde a falta de lamento por tê-lo demitido até uma certa mágoa por todos os constrangimentos outros que o então Ministro trouxe a seu governo.
Um abraço pode incomodar muita gente. Pode causar ciúme, inveja, estranheza, dúbias e/ou equivocas interpretações e por aí vai.
O médico Drauzio Varella, conhecido e reconhecido por seus métodos, digamos, pouco ortodoxos de conduzir a medicina, foi alvo de muitas críticas por ter abraçado uma presidiária trans.
A mulher estava há tempos sem receber visitas. E ele fazia uma reportagem sobre o abandono dos familiares aos seus que estão na cadeia. Evidente que as críticas vieram mais forte que abraço de urso.
A mulher era uma criminosa. Cumpria pena, pra piorar, de assassinato. “Quem abraça a família da vítima”, era a indagação mais rasa e óbvia pra embasar as críticas.
Vejam, Varella não pediu a soltura dela. Não menosprezou seu crime. Nem mesmo contextualizou as circunstâncias do malfeito por ela. Não defendeu que ela era vítima da sociedade. Nada disso. Apenas viu carência naquele ser humano à sua frente. Lhe ofereceu literalmente todo o seu corpo. Um abraço. Nada mais do que um simples(?) abraço. Um silencioso abraço, embora emoções ecoavam surdamente em ambos.
Tenho certeza que o médico abraçaria com franco pesar a família da vítima, que, também não tenho dúvidas, foi muito abraçada e é até hoje.
Quando este isolamento todo terminar, talvez, pelo menos por algum tempo, façamos questão de andar pelas ruas esbarrando uns nos outros, buscando conhecidos prum abraço.
Saudades dum abraço, né, minha filha?
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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