Filippe de Oliveira Mota e Isadora Xavier, sitiodeatibaia
Há uma disputa política em evidência nas últimas semanas. Afinal, Ernesto estava certo. O vírus do comunismo não estava de brincadeira, e seu espectro tem rondado a nossa sociedade. Enquanto notícias falsas sobre mamadeiras e kits pesavam a mão sobre a diversidade da nossa sociedade, as críticas que hoje se direcionam à quarentena tentam sufocar a visão de coletividade que ela concede.
Após décadas de aprofundamento do ideal neoliberal, descobrimos da pior forma possível que não somos indivíduos isolados no mundo. Dependemos dos outros para viver, assim como eles dependem de nós. A mera percepção dessa coletividade nos permite furar a bolha da visão individualista e transcender em direção ao pensamento coletivo, político, afinal. E nada menos neoliberal do que a política. Nada menos neoliberal do que a população conformando seus interesses em direção a um interesse geral.
Não é necessário o reconhecimento de Emmanuel Macron quanto às falhas do modelo neoliberal. Suas evidências já estão por todo o lado. Reconhecer suas falhas, afirmando que “existem bens e serviços que devem ficar fora das leis do mercado”, parece mais uma tentativa de salvar o moribundo no seu último suspiro do que um reconhecimento verdadeiro. Não fosse isso, as greves reiteradas na França já teriam sido mais do que suficientes para demonstrar essas falhas.
Mas se na França já estão pensando em maquiar o neoliberalismo, voltemos ao Brasil, onde Guedes comanda o barco.
Faz pouco mais de um ano que a extrema-direita chegou ao poder no país. Todos sabemos. Sua agenda econômica agradou a muitos, principalmente ao mercado, mas também aos grandes meios de comunicação, à indústria, às pequenas e grandes empresas.
Os palavrões, nunca ninguém gostou muito. Coisa de gente rude. Mas Bolsonaro era verdadeiro. Homem do povo. “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, dizia o Messias. Está escrito.
E não é possível agradar a todos dizendo somente a verdade. Algumas de suas opiniões eram, talvez, um pouco ríspidas demais. Revelavam o preconceito que reina no país mestiço, e que tanto tentamos esconder. Mas revelavam no melhor estilo liberal. Sem remorsos, portanto.
Todos são iguais, dizia o então candidato. É verdade que uns não servem sequer para procriar, outros deveriam morrer, mas essa é apenas uma questão de opinião. Se não tivéssemos liberdade de expressão, estaríamos na China, e não no Brasil.
No entanto, como têm divulgado alguns veículos de comunicação, na reunião ministerial cujo vídeo foi divulgado essa semana o presidente passou dos limites: foram trinta e três palavrões. A Folha de São Paulo fez uma lista para que todos possamos conferir um a um. Dentre os mais pronunciados, merdas e bostas, como era esperado. “O palavreado que foi utilizado é chulo, que ruboriza até mesmo aqueles acostumados com mesa de bar”, disse Fernando Collor.
Ruborizados ou não, a reunião é realmente triste. Talvez não tanto pelos palavrões. Conforme o vídeo publicado, como ressalta o mesmo jornal – e outros também –, teria ficado clara a intenção do presidente de interferir nos trabalhos da Polícia Federal no Rio de Janeiro, onde foi assassinada Marielle Franco há pouco mais de dois anos. “Não vou esperar foder a minha família toda”, disse Bolsonaro no vídeo.
O palavrão já foi contabilizado, a corrupção também, mas há algo por trás que não se deixa revelar tão facilmente. E não se trata da possível tentativa de atrapalhar as investigações sobre o assassinato da Vereadora, porque isso já está bastante claro.
Voltemos nossa atenção à atuação da Vereadora, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Suas ideias feministas, antirracistas, anticapitalistas, de promoção da igualdade material. Moradora da Maré, era um elo efetivo entre a população explorada e a política, uma escada para que muitos pudessem alcançar a dimensão coletiva da vida. A quarentena tem evidenciado essa mesma coletividade, com a qual o indivíduo forjado na sociedade neoliberal tem muita dificuldade de se conformar, e o mercado ainda mais.
É quando o indivíduo se interessa pela sua realidade e sobe na escada para apreciar a vista que o apito da fábrica soa e os gerentes se põem à porta para anotar a hora da entrada. A economia não pode parar no tocante à produção, diz o chefe.
Afinal, não são os palavrões, com os quais ficou tão triste Fernando Collor, nem a alegação de corrupção, que outrora solapou Dilma Rousseff do governo, mas o poder do mercado o que deveria nos chocar nesse momento.
Seja o mercado enquanto entidade que flutua sobre nossas cabeças, determinando governos e políticas, seja o mercado que atua dentro de cada um de nós, que nos dirige os desejos, interesses e atividades.
Não devemos defender o “bosta” ou o “estrume”, e nem os onze “filhos da puta”, ou sequer as estruturas nas quais se empenham para a manutenção do disparate da nossa realidade, mas a importância da coletividade em nossas vidas. É o exercício da política como elemento fundamental da nossa humanidade o que deve nos guiar.
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