Os que detém o poder colaboram para manter aqueles que o desejam numa zona de empoderamentos e competitividade saudável para que o sistema de dominação funcione sem inconvenientes.
Anaide Carvalho* e Eduardo Bonzatto*
O tabu é um ídolo amarelo inventado para ser exclusivo e oculta um espírito silencioso e voraz, capaz de devorar toda a gente em seu interior nebuloso.
O mundo globalizado extravasou todas as fronteiras e não apenas as barreiras alfandegárias, mas certamente as fronteiras culturais foram pulverizadas e dos cacos que essa expansão promoveu, todos podem usufruir dos legados ancestrais ou futuristas disponíveis nas redes.
Otakus carregam ousadas fantasias de neon dos míticos heróis da cultura pop japonesa; as tatuagens tribais maoris riscam peles multicores em qualquer bar underground da terra; mocassins confortáveis há séculos usados pelos sioux podem ser comprados em qualquer feira livre de qualquer continente, assim como calças jeans que eram duráveis na lida do trabalhadores rurais do sul dos EUA de há muito se tornou moda jovem comum a muitas gerações que hoje rasgam suas tramas a compor um visual bem familiar.
Haile Selassie criou uma cultura que iria servir a um propósito diferente no mundo global.
Antes de se proclamar imperador da Etiópia, criou o movimento rastafári para justificar sua linhagem pertencente ao rei Salomão, do qual seria o segundo messias enviado para cumprir os desígnios bíblicos de pacificação. A origem do nome vem de Ras, cabeça e Tafari Makonnen, nome original de Haile.
De origem cristã, o movimento rasta se alastrou como representante da cultura africana, mesmo depois das revelações sobre o deus vivo Haile ser um ditador a serviço dos EUA na grande repressão durante o segundo império, já nos anos 1970.
O movimento acabou por divulgar um conjunto de práticas que ansiavam por representar uma cultura africana original, que envolvia os dreadlocks, ganja, comida natural, e a língua amárica falada pelo imperador. Seu vínculo com os princípios bíblicos podem causar certa estranheza, mas tem raízes na igreja ortodoxa etíope, o mais antigo ramo do cristianismo na África.
A rigor, nunca houve um exclusivismo na estética e na ética rasta em sua expansão via Jamaica, muito pelo contrário, no caudal da música de acolhedoramente política de Bob Marley, foi envolvendo gente de todas as correntes humanas.
No Brasil, motivado pelos empoderamentos dos anos 2000, que envolviam cotas e os aspectos mais liberais da ascensão social, as representações sociais rasta, principalmente no que tange ao corpo e cabelos, sofreu um encolhimento político de exclusividade para militantes negros.
Uma série de dispositivos excludentes como a política de identidades, o lugar de fala, dispositivos antirracistas que funciona como patrulhamento ideológico de constrangimento, elegeram os cabelos rasta como um lugar proibido para não negros, criando uma ideia corrompida de que a apropriação cultural é ilegítima para todos que não partilham da herança africana.
A ignorância desses grupos acerca da origem bíblica do movimento, e seu alastramento para outros detalhes culturais como adereços de cabelo, tecidos de vestuário, sandálias e penteados passaram a compor um ideário de exclusões para não negros.
Os turbantes passaram igualmente a ser proibidos aos grupos não negros, atraindo a militância mais retrógrada para manter um campo de privilégios culturais como se autentificasse um cânone originário efetivo.
De modo global, não há nenhuma restrição a portar adereços culturais por grupos diversos, com a exceção do caso brasileiro.
Entender como e porque grupos restritos se apropriaram de significados culturais para excluir e constranger indivíduos que não compartilham características raciais específicas.
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Os preconceitos e racismos ativados nessa zona de privilégios carrega um forte apelo compensatório, como se os herdeiros das características fenotípicas do passado escravista portassem um direito inalienável à apropriação de significados específicos. Essa característica compensatória bebe, no entanto, num movimento de apropriação de poder que havia sido oferecido como direito. Essa passagem precisa ser melhor investigada para entendermos o processo fenomenológico por trás dos constrangimentos diversos e dos patrulhamentos que mantém constante zona de conflito em atividade.
Esses grupos operam como sustentadores do status quo ao contribuírem para uma hierarquização com valores simbólicos étnicos.
Curioso que Bob Marley, um dos seguidores dos princípios hasta, acreditava que sua música teria força para acabar com o preconceito, só a música, cantada em ondas pelo mundo todo, mas aqui no Brasil, um grupo de pessoas resolveu impedir e desconsiderar que outras queiram ostentar adereços cuja origem desconhecem, mas que se apropriaram e negam a quem acreditam não ser merecedor de usufruir das distinções que só elas podem ostentar, mas também podem legislar, proibir, coibir, impedir, num claro movimento de preconceito, poder e exclusividade.
Os que detém o poder colaboram para manter aqueles que o desejam numa zona de empoderamentos e competitividade saudável para que o sistema de dominação funcione sem inconvenientes.
A herança do sofrimento histórico pode produzir dois sentimentos antagônicos e opostos. De um lado, um sentido de fraternidade que supera toda dor e se manifesta como humanização incondicional. De outro, um rancor, tal como se o espírito judiado incorporasse nos corpos jovens de outro tempo exigindo reparo e submissão. Em todos esses movimentos, há verdade. E essa verdade é o tesouro do espírito que carrega e é encarregado de exibir a dimensão da vida e da morte.
Não é possível afirmar que o Bob Marley que passou uma vida compondo músicas de paz e unificação, usando sua própria árvore genealógica para validar sua luta, expondo seus pensamentos:
“Meu pai é branco e minha mãe é negra. Sabe, eles me chamam mestiço ou seja o que for.
Bem, eu não fico do lado de ninguém.
Eu não fico do lado dos negros nem do lado dos brancos.
Eu estou do lado de Deus.”
e,
“O homem que engravidou minha mãe era branco, então você não pode me definir nem como branco nem como negro.
Então eu estou aqui. E eu tenho que promover a união.”
Ainda seria o mesmo de quando estava pra fazer seu último show, quando já se encontrava avançada a debilidade pela doença e seus amigos lhes disseram para que descansasse e a resposta foi “aqueles que fazem o mal nunca descansam”.
Diferente das idéias de união de Bob Marley, mas em grande semelhança as de Haile Selassie, Marcus Garvey, “o novo Moisés” ganhava força colossal.
Garvey fundou a Universal Negro Improvement Association (UNIA) no ano de 1917. Em pouco tempo conseguiu ter filiados praticamente por todo o mundo. Obteve apoio imenso das massas e soube capitalizar com maestria mediante a crescente amofinação e desalento que pairava entre os afro-americanos.
Organizou uma estrutura digna dos conglomerados e coordenou um grande trabalho de doutrinação e partidarismo, sobretudo entre as camadas mais pobres, o que o levou a liderar o mais dominante movimento de massas nos Estados Unidos, chegando em apenas 3 anos de fundação ao impressionante patamar de mais de 1 milhão de membros.
Cabe aqui ressaltar particularidades de Garvey muito semelhantes ao atual presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro.
Ambos conquistaram seguidores fiéis num curto espaço de tempo, estes por sua vez afirmavam admirá-los por suas “raras qualidades” nesse e naquele tempo: SINCERIDADE E FALTA DE HIPOCRISIA.
Bolsonaro assim como Garvey, jamais conseguiu atrair os intelectuais, mesmos aqueles intitulados de direita que em geral se mantiveram afastados e alguns lhes foram sempre hostis. Apesar do discurso de ambos atravessarem bases de estrutura capitalista, os “homens de negócios” também nunca lhe conferiam credibilidade para além de alguns poucos interesses corporativos.
Os grupos que hoje esbravejam furiosos, vociferando nas redes seus direitos exclusivos sobre adereços culturais, agem de igual maneira aos ideais identitários de Marcus Garvey que sem nenhum pudor lutava a favor da política de segregação.
“Quanto às acusações de ligações entre Marcus Garvey e os líderes brancos radicais, poder-se-ia dizer que havia uma admiração mútua entre o líder jamaicano e os líderes brancos, porque ambos os lados estavam pregando a pureza das raças e renegando a miscigenação. Garvey os admirava também por sua falta de hipocrisia e seu racismo aberto. Essas ações controvertidas de Garvey se baseavam no fato de que o líder da UNIA acreditava que os afrodescendentes deveriam deixar os brancos fazer o que quisessem na América, desde que os afro-americanos pudessem desenvolver uma nação na África” (Cronon, 1969, p. 188-192).
“Nós fomos os primeiros fascistas. Disciplinamos homens, mulheres e crianças e preparamo-los para a libertação da África. As massas negras viram que só neste nacionalismo extremo podiam depositar as suas esperanças e apoiaram-no de imediato. Mussolini copiou de mim o fascismo, mas os reacionários negros sabotaram-no.” Marcus Garvey
Se torna complexo na atual conjuntura pontuar o último caso de fascismo protagonizado por estes que se intitulam “justiceiros desse tempo” que assim como Garvey, Bolsonaro, Selassie aproveitam situações como as expostas, única e exclusivamente para capitalizar. Usam a política de cancelamento para todos aqueles que ousam desviar-se desse discurso e criminalizam aqueles se recusam a operar no pensamento dicotômico e do automatismo concordo discordo.
Seguem camuflados com vestimentas de igualdade, mas buscam diariamente mais poder em todas as esferas.
Fosse nesse tempo “Redemption Song” e “Three little birds” não poderiam ser escritas. Fosse nesse tempo Bob Marley talvez se tornasse o próximo cancelado como capitão do mato.
*Anaide Carvalho é alquimistas, professora e historiadora e *Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
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