O caso Decotelli e o racismo
O que vejo de racismo nesse caso é justamente o que Decotelli não viu: você não é um deles ou, como diria o Capitão Nascimento, aquele racista debochado: “nunca será”.
Lelê Teles*
Carlos Alberto Decotelli – eu não queria estar na pele dele – está sendo linchado em praça pública; oh, dor amarga, oh, opróbrio terrível!
Ouço seus lancinantes gemidos e não tenho como não ter empatia; é triste, sempre é triste ver um homem negro sob o jugo dos carniceiros.
O grande erro de Decotelli, vamos começar por aqui, não foi ele ter cometido não sei quantas fraudes curriculares, o grande erro foi ele não ter se dado conta de que a “ele” não era permitida essa transgressão.
Fraudes curriculares e plágios estão por toda a parte, dá um google.
Só neste governo, que é uma fraude total, já foram flagrados alguns personagens anabolizando currículos ou enxertando coisa alheia em textos seus.
Se você for curioso e der uma olhada nos currículos dos ministros Cezar Peluso e Cármen Lúcia verá que ambos, sabatinados pelo Senado antes de assumirem os cargos vitalícios, afirmaram ter doutorado, e eles não têm.
O lance é que há um estrato da sociedade que tem seus mecanismos de compadrio, de passapanismo, de mão na cabeça…
Recorda-te que a punição para o magistrado é a aposentadoria compulsória com pomposa remuneração. Eles têm uma rede de autoproteção e autodefesa.
Porém, Carlos Decotelli não se deu conta de que não era um deles.
O homem negro não é um homem, é um homem negro, gritava Fanon.
Ao homem negro, dentro da superestrutura criada pelo e para os brancos, não lhe é dada a prerrogativa do erro, há sempre uma espada apontada para o seu pescoço. E o carrasco, carrancudo, treme de ansiedade para receber a ordem capital: decapitar!
Aquela cabeça rolando ali na frente, com um sinal horrível na testa, é Decotelli.
Seus “pares” o abandonaram, é sempre assim.
Ninguém saiu em seu socorro. O general Heleno já disse que “isso é problema dele”.
Lembra-te do jovem mato grossense, pardo e gay, agredido violentamente por uma evangélica em seu local de trabalho. Sua queixa? todos em volta apenas observavam e filmavam, ninguém veio acudi-lo.
Anota isso, cara, eles têm um sistema de autodefesa que nunca funcionará para pessoas como Decotelli. Aquele infausto rapaz também saía dos padrões.
Voltemos: esse ex-ministro, que entrou para a história saindo, é um personagem típico descrito por Frantz Fanon, que empalidece, aos seus olhos, quando não reconhece sua própria alteridade diante da estrutura patriarcal branca em que tenta se imiscuir sem fazer ruídos, pois sabe-se clandestino.
Talvez até se debatia para apartar-se da sua negritude. Acontece em muitos casos.
Acho injusto o ministro ter sido demitido? Acho sacanagem que ele tenha saído sem nem ter entrado?
Né isso não, cara. Decotelli tem que pagar pelos seus erros, falo da natureza da sua atitude.
Decotelli foi tão ingênuo, uso ingênuo aqui como sinônimo do que Fanon chamou de alienado, que ele poderia ter declinado do convite; porque era óbvio que ocupando o posto que iria ocupar iriam escarafunchar sua vida pregressa, que uns perdigueiros iriam stalkear seu currículum e outras etcéteras…
De onde ele tirou essa confiança de que não daria nada errado?
Achou que a estrutura ia funcionar a seu favor, deu com os burros n’água.
É que ele achava, como bom mitomaníaco que demonstra ser, que uma desculpa esfarrapada seguida de uma galhofa faria todos sorrirem e deixarem por isso mesmo.
Ele viu isso acontecer diversas vezes.
É isso, Decotelli não se enxerga.
Vivendo numa situação ambivalente, doutrinado intelectualmente pela academia eurocêntrica, deve ter lutado muito contra mil demônios, forjando uma personagem que ele pudesse incorporar para ser aceito num reduto que, como vimos, era povoado por bolsonaristas racistas, classistas e cafajestes.
A coisa não deve ter sido fácil pra ele.
Lembro do capa-preta parnasiano, o Barroso, se referindo ao colega Joaquim Barbosa como “negro de primeira linha”.
Relembre: Barroso pede desculpas após chamar Barbosa de “negro de 1ª linha”
Decotelli vai levar para o resto da vida essa marca na testa: mentiroso, fraudador, negro de segunda linha.
Joice Hasselmann, escuta essa, foi acusada de nada menos que 65 plágios.
Sim, ela foi cobrada, os jornais falaram sobre isso, as pessoas lançaram-lhe tomates e ovos podres, mas era uma coisa mais jocosa que raivosa.
Joice não carrega uma mancha na testa, a marca de caim, o sinal do criminoso.
Quem ainda se lembra desse episódio de Joice? Ela foi premiada por seu erro, tá lá, ocupando uma das torres do Congresso; caiu pra cima, como um Weintraub.
Lembra que eles são punidos com prêmio pelos seus erros?
O ministro do meio ambiente também andou mentindo sobre sua formação acadêmica.
Quêde a marca na testa?
Nunca se esqueça que o ministro Orlando Silva — negro como não? — foi demitido de um governo progressista porque havia comprado uma tapioca, no valor de três lascas e noventa centavos de real, com cartão corporativo.
Lembra da espada?
Tem uns códigos aí, malandro, que os caras operam dentro de uma estrutura hermeticamente fechada.
O que vejo de racismo nesse caso é justamente o que Decotelli não viu: você não é um deles ou, como diria o Capitão Nascimento, aquele racista debochado: “nunca será”.
palavra da salvação.
saravá!
*Lelê Teles é graduado em jornalismo pela UnB, criador e roteiristas dos programas seriados Estação Periferia (TV Brasil) e De Quebrada em Quebrada (TV Cultura), e roteiristas dos documentários Atlântico Sul, Mar das Baleias (IBJ) e Galope do Biomar (escrito junto com o cantor Xangai para o projeto Tamar) entre outros. Premiado na Primeira Bienal Bienal de Cultura da UNE com a novela Lagoas, figura nas antologias Contos Natalinos (ed. Atlas) e Contos da Quarentena (Ed. Kotter).