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O demônio familiar

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Em todos esses lares habita um demônio familiar, uma energia que mobiliza, que fere, que cria o conflito, chame-a ideologia ou paixão, pouco importa, mas que já não pode mais deixar o lar, sair ao mundo frio do abandono.

Lula, Bolsonaro e Felipe Neto (Imagens: instagram)

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Milan Kundera, na Insustentável Leveza do Ser, pela página 284 da edição da Companhia das Letras de 2008, dá sua interpretação do momento em que Nietzsche desaba para viver todo sentimento que havia negligenciado durante sua vida mortal:

Nietzsche está saindo de um hotel em Turim. Vê diante de si um cavalo e um cocheiro lhe dando chicotadas. Nietzsche se aproxima do cavalo, abraça-lhe o pescoço sob o olhar do cocheiro e explode em soluços. Isso aconteceu em 1889 e Nietzsche já estava, também ele, distanciado dos homens. Em outras palavras: foi precisamente nesse momento que se declarou sua doença mental. Mas, para mim, é justamente isso que confere ao gesto seu sentido profundo. Nietzsche veio pedir ao cavalo perdão por Descartes. Sua loucura (portanto, seu divórcio com a humanidade) começa no instante em que chora pelo cavalo. É esse Nietzsche que amo…

É uma sugestão intrigante essa e que merece umas tantas páginas de brilhantismo que logicamente me falta.

Aprisionado pela síndrome do escafandro, Nietzsche permanecerá por dez anos ligado ao mundo unicamente pelo sentimento. O sentimento é uma teia cognitiva que expande a vida de todo ser. Sua amplitude nos é negada no universo cartesiano porque é temerário sentir diante do pensar.

O pensamento está inscrito e circunscrito numa dicotomia RAZÃO-EMOÇÃO e deve permanecer por aí mesmo, com o risco de ser negado pelo sentimento.

As diferenças entre emoção e sentimentos são muitas, mas ainda pouco exploradas, de tal sorte que muitas vezes se confundem.

Se o sentimento é uma chave que abre para o desconhecido, portanto é caos, pois é imprevisível, a emoção é o próprio corolário da razão, na medida em que é reativa a estímulos e experiências, acionando temperamento e personalidade, reforçando a autoimagem e acionando o ego. Emoção é requisito da racionalidade, como se sua presença no humano pudesse humanizar. Se o sentimento é caos, a emoção aspira a uma forma de ordem.

A racionalidade, diga-se, é o ferramental mental necessário à expansão infinita do capitalismo, colonizando as mentes de modo a que a própria ressignificação do sistema capitalista mantivesse seus dispositivos funcionais. Então, capitalismo, socialismo, comunismo, anarquismo, ismo, ismo se sucedem num cenário sempre teleológico rumo à democracia.

A democracia é um sistema emocional, como o é o sistema capitalista. E digo emocional num sentido bem subjetivo, de símbolos cujo efeito produz um orgulho, uma soberba e um vínculo de pertencimento. A racionalidade que se exige é sempre instrumental.

Todas as etapas de preparação para ingressar nesse mundo é de subserviência sutil. Na educação é o currículo oculto que vai drenando no sujeito seu pertencimento. Cada etapa é premiada pela submissão. De notas, de emulação, de vínculos.

O mundo do trabalho não será diferente. Necessita de vínculos e em sua forma mais avançada, a síndrome da eficiência, ou seja, faço o melhor não porque quero agradar, mas porque é como me reconheço, no fazer perfeito da submissão sem submissão, mas voluntária.

As formas competitivas são aqui traduzidas em QI, Quem Indica, pois toda competição é mais uma vez simbólica e ostentatória.

Aqui é o reino dos doutores, essa forma que se exibe sem nenhum pudor antecedendo o nome. Em que qualquer diploma universitário é um atestado de superioridade social.

E no discurso da servidão voluntária, o melhor é ser eficiente. Ou seja, nem precisa de chefia, de comando, de dono. O trabalho passa a se confundir com a própria vida e exige o tempo todo do ser.

Não deve ser por racionalidade, portanto, que um ser como esse se movimenta, pois qualquer atividade de pensamento que o leve a compreender essa situação exigiria que negasse sua própria história.

O jogo emocional sempre está no topo da racionalidade. Me lembra uma peça teatral do tempo da escravidão.

O demônio familiar é uma peça em quatro atos de José de Alencar. Escrita em 1857, que apresenta Pedro, o escravo da casa que queria deixar de ser serviçal para se tornar cocheiro, ou seja, pretendia uma grande ascensão social naquele espectro da escravidão. Pedro, o demônio familiar, vive o cotidiano da casa como se fosse “da família”.

Machado de Assis chamava a atenção da peça pelo seu “ar de convivência e de paz doméstica que encanta desde logo”. E será nessa posição que Pedro vai tecendo arranjos, intrigas, promovendo alianças, como um verdadeiro Puck shakespeariano. Sua maestria é lidar com as emoções como um verdadeiro manipulador.

Uma vez descoberto, sua punição será exemplar: seu dono lhe concede a alforria, o que significa, segundo a dramaturgia alencardiana, deixa-lo à sua própria sorte, sem a proteção da instituição que o acolhia.

A emoção que serviu a seus propósitos, agora, como castigo, desencadeia sua exclusão. Não há redenção para Pedro.

A escravidão é uma visão de mundo e não um jogo de racionalidades, ou na melhor das hipóteses, a racionalidade da escravidão não admite viver fora dela, assim como no mundo do trabalho, viver do lado de fora é não mais existir.

Esse o jogo emocional do sistema. Ele nubla a razão ao tornar seus usuários bólidos emocionais a suportar todo o peso. Passa a ser racional servir, pois o sistema está dentro.

Para entendermos o jogo emocional do sistema precisamos de uma jornada no mundo da meritocracia. Pois a meritocracia é em si racional, depurada de todo novelo emocional ela refrigera o pensamento, unicamente. A meritocracia é fruto de um pragmatismo político.

Existem muitos mundos dentro desse mundo eurocêntrico. Além do capitalismo, da democracia, existe a grande força moral da religião muçulmana, existem as tribos diversas, que só para darmos dois exemplos, relembro aqui o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), tribos armadas e aguerridas que defendem seus territórios autônomos que são muito diferentes do conceito de nação.

Quero aqui tecer uma comparação bem didática do caso chinês. Eric Li desvenda as metanarrativas que normatizam nossa percepção dos sistemas de poder e o faz de modo técnico e inovador.

Ele é um crítico das metanarrativas, que é a forma como naturalizamos uma história colonizadora e, consequentemente, o poder.

Para estabelecer essa crítica, vai investigar como funciona o acesso ao poder no país gerenciado por um partido único, sem democracia e que, no entanto, é hoje a segunda maior economia do mundo.

A China pós revolução cultural não chegou a esse lugar global descuidadamente. O partido único chinês opera sua eficiência pautado numa lógica meritocrática extremamente funcional cujas características principais são também a adaptabilidade e a legitimidade.

O mais alto corpo legislativo chinês é o Politburo , com 25 membros. Em sua mais recente formação, apenas 5 membros tiveram uma vida privilegiada. O restante viveu uma vida comum. No comitê central de 300 ou mais, aqueles que nasceram com riqueza ou poder é ainda menor. A grande maioria dos principais líderes no poder na China lutaram e trabalharam por seu lugar.

O Departamento de Organização do Partido é um organismo que funciona como um enorme sistema de recursos humanos, que opera uma pirâmide rotativa em três níveis: serviço civil, empresas estatais e organizações sociais como universidades ou programa comunitário. Eles formam carreiras separadas, porém integradas para funcionários públicos chineses.

A base é denominada de keyuan (funcionários) que podem ser promovidos a quatro níveis crescentes de elite: fuke (vice-gerente de seção), ke (gerente de seção), fuchu (vice-gerente de divisão) e chu (gerente de divisão). Esses cargos referem-se a grande variedade como administração da saúde pública de um vilarejo, investimento estrangeiro num distrito urbano, diretor de uma empresa.

O departamento então avalia o desempenho do funcionário, entrevistando seus superiores e colegas, seus subordinados, examinando sua conduta pessoal. Consultam as pessoas todas envolvidas no serviço do funcionário e só então executam a promoção devida. Durante sua vida, o funcionário pode alterar a carreira várias vezes e se for mesmo bem avaliado irá além do nível básico, subindo até os níveis fuju (vice-chefe de gabinete) e ju (chefe de gabinete).

Aí atingem a alta oficialidade. Passam então a administrar um distrito com milhões de habitantes ou uma empresa com milhões de dólares em receita. Um sistema altamente competitivo que, em 2012, havia 900 mil níveis fuke e ke, 600 mil níveis fuchu e chu e somente 40 mil níveis fuju e ju.

Depois do nível ju, a subida se torna muito mais difícil, até chegar ao comitê central. O processo demora de duas a três décadas e o mérito é o componente mais importante, a despeito de certos favorecimentos.

O departamento que rege toda essa complexa movimentação meritocrática é herdeiro de uma tradição de mentores na China.

O atual presidente chinês começou administrando um vilarejo no interior do país e depois de 30 anos, quando entrou no Politiburo, havia administrado áreas com uma população total de 150 milhões de pessoas e PIB combina de 1,5 trilhões de dólares.

Luiz Inácio Lula da Silva ou Jair Messias Bolsonaro antes de chegar à presidência da república não haviam administrado nem um campo de futebol.

Não busco aqui um padrão ou uma teoria, mas a democracia, cada vez mais que avançamos no corpo de suas mazelas, as escolhas são muito mais emocionais do que racionais.

Conversando com três gerações de uma mesma família tipicamente urbana e de classe média, recolhi essa preciosidade emotiva de cada uma. A mãe, bolsonarista, dizia que esse “homem” que lutava sozinho contra um sistema injusto merecia um pouco de paz e felicidade. A filha, lulista, queria que o Lula, depois de uma jornada de lutas e injustiças sofridas, gozasse de felicidade e paz. O neto, adicto do Felipe Neto, dizia que ele está feliz, sacrifica a vida em busca da difícil tarefa de conquistar mais adeptos, mas está claramente feliz.

Nesses três casos a hagiografia mobiliza milhões de pessoas emocionalmente envolvidas, são quase pessoas “da família” esses avatares. Se referem a eles com aquela intimidade que devotamos a quem amamos, cujo afeto nos mobiliza. Nenhuma das três pessoas conhece seus ídolos, mas os tratam com benevolência e carinho. Não há como não identificar nesses gestos emoções variadas. Nos três casos parecem dizer com Leon Bloy que “só existe uma tristeza: a de não sermos santos”.

Recentemente, Felipe Neto publicou em suas redes sociais o seguinte comentário, digno de um santo:

Desculpa se estou te irritando. Eu juro que minha luta é para o seu bem, também. Um dia você vai enxergar isso”.

E o PCdoB comentou na mesma postagem:

Conte com o apoio do PCdoB Felipe Neto, você tem sido fundamental na luta pela democracia”.

É dessa incompreensão de uma parte que vive o santo. Seu sacrifício, no entanto, é por todos.

Os três foram alçados a essa posição que mobiliza milhões de pessoas sem muita razão de ser, mas os três se tornaram razoáveis não pelo desempenho ou pela eficiência, só a emoção explica a forma com que seus seguidores os veem. Uma emoção genuína, paripassu com a razão, quase razão, razoável.

Em todos esses lares habita um demônio familiar, uma energia que mobiliza, que fere, que cria o conflito, chame-a ideologia ou paixão, pouco importa, mas que já não pode mais deixar o lar, sair ao mundo frio do abandono. É preferível a escravidão, porque ele se tornou familiar.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

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