Redação Pragmatismo
Colunistas 22/Jul/2020 às 17:00 COMENTÁRIOS
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Desígnio, Design, Desenho, Deus

Publicado em 22 Jul, 2020 às 17h00

Se considerarmos que deus é acolhimento e energia, então podemos pensar num desígnio como um cuidado para a vida. Um sentimento de que estamos sob sua proteção e cuidado.

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(Imagem: wixsite)

Se sou amado, quanto mais amado mais correspondo ao amor. Se sou esquecido, devo esquecer também, pois amor é feito espelho: tem que ter reflexo”. Pablo Neruda

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

O que nos aguarda na vida? Será possível considerar que existe um desígnio sobre o qual caminhamos? Não pense que essa é uma pergunta fácil ou simples de ser respondida. Claro que ao pensar num desígnio estou pensando num deus. E um deus que é energia e acolhimento, independente de minha fé. Independente principalmente dos meus pecados. Pois se há um deus não pode haver julgamento. Seria indigno dele julgar, que é separar e classificar, como é indigno também que julguemos. Isso é coisa pra ciência, não pra deus.

Se considerarmos que deus é acolhimento e energia, então podemos pensar num desígnio como um cuidado para a vida. Um sentimento de que estamos sob sua proteção e cuidado.

A frase mal sabida de que aqui é o paraíso pra todos aqueles que sabem que é o paraíso e o inferno pra todos que não sabem é adequada a esse deus, da mesma forma que o dito só vê fadas quem acredita em fadas, pois não acreditamos com o pensamento, mas com o sentimento. Sentimos que ali estão as fadas. E lá estão elas.

Com deus a coisa é um tanto mais complicada, mas não muito diferente. Sua existência se dá incondicionalmente ao nosso desejo ou à nossa crença ou sentimento. E aqui desígnio é propósito.

O propósito promove um design que denomino de egrégora. A egrégora é uma condensação de energia que nos acolhe, uma vez que tenhamos conquistado o propósito.

A questão então é como se constrói um propósito nessa vida. De fato, trata-se de uma construção laboriosamente tecida. E primeiro é preciso conhecer o norte, o seu norte, o que o norteia, para onde tu olha quando acorda e quando volta a dormir. Esse norte é a tua ação, tua atitude, teus gestos diante da vida.

Esse gestual vai se manifestando de modo casual em meio a um vasto conjunto de atitudes que são quase sempre controversas e paradoxais. Esse caminho é importante para que tu considere em todas as manifestações aquelas que te definem.

Então, mesmo sem ter qualquer noção do propósito, nossas ações e atitudes vão tecendo expansões concêntricas, ou seja, vão se abrindo em meio ao cipoal de confusão que é a vida. Confusão e contradição é tudo que temos diante da realidade. E reagimos também com confusão e contradições. Mas a vida vai nos envolvendo, de tal sorte que preferimos umas coisas a outras, agimos diante de um evento e reagimos diante de outros de modo diverso e controverso.

Nossas ações e atitudes são de dois tipos genéricos: competitivas ou egoístas e solidárias ou colaborativas. Não conheço outras ações além dessas aí. E acredite, nossa vida percorre um caminho em que cada uma delas vez ou outra emerge como algo nosso.

Com o andar da carruagem, essas ações e atitudes se tornam mais consistentes e vão definindo nossos valores, ou seja, aquilo que nos define, embora sempre a dualidade será uma contingência presente.

Essas ações e atitudes também têm a ver com nossa ligação com as formas de poder que a sociedade nos convida. Se nos apegamos aos desígnios do poder, vamos nos isolando diante da necessária compaixão, e o poder, que é um sentido e um sentimento de que tudo e todos estão sob a nossa influência e sugestão, mas que também estamos sob a influência e sugestão de outros, pois o poder exige atitudes de submissão e de arrogância, de servir ao poder.
Claro que o egoísmo, o ego, esse dispositivo de enaltecimento, vai tecendo uma série de circunstâncias em que nosso servir ao poder seja premiado. Teremos reconhecimento, premiação, respeito. E com isso nosso servir ao poder será sempre mais incisivo. Sempre mais intenso, sempre mais devoto.

Com isso vamos sendo envolvidos por essas certezas, de que o mundo é assim mesmo, sempre foi assim, e a nossa volta vai tecendo uma colônia e energias heteronômicas, de que a verdade é essa e de que temos que seguir esse caminho do poder, já que não há outro.

O poder envolve e isola seus usuários conferindo ondas de significados sociais cuja distinção é sempre capaz de garantir desempenho, vigilância, prudência. O sujeito vai se sentindo cada vez mais consciente de seu poder pessoal, que é um espelho do poder simbólico que usufrui. E esse envolvimento que imita a egrégora energética, parece coisa de deus, da premiação por uma vida dedicada ao trabalho, aos rigores da busca pelo sucesso, do desenvolvimento pessoal e intransferível. Pois o poder convence seus usuários que estão melhorando social e pessoalmente e que esse desenvolvimento é a prova do bom caminho, sem perceber que o desenvolvimento é a quebra do envolvimento, a separação do homem de sua humanidade.

O design vai se consolidando em adereços, em caprichos, em riqueza aparente e em bugigangas. A casa vai se tornando maior, o carro mais novo, os filhos em escolas privadas, as dívidas vão crescendo, a aquiescência vai se tornando um hábito e a vida vai cumprindo seus desígnios de sucesso e reconhecimento. São os determinismos materiais do ego que volitam em torno do sujeito. A admiração dos seus parceiros, o reconhecimento no mundo do trabalho, as dádivas de uma vida devotada ao poder, tudo vai se consolidando como sendo o propósito da vida. A solidariedade se torna mais um motivo de enaltecimento pessoal e tudo passa a fazer muito sentido.

O núcleo de afetos, todavia, se torna árido, pautado por presentes de toda sorte de materiais, símbolos, bandeiras, glória e fama que mais afastam esses afetos e o abandono passa a ser curado com medicamentos. Ansiedade, depressão, vitimização, empoderamento são as manifestações das patologias do poder naturalizado. O egoísmo é seu corolário. O isolamento sua maldição. Nunca há amor nessa vida. Só o que existe é a iminência do amor, a esperança do amor, e a carência, a falta perpétua, pois a busca só amplia a falta. Sempre haverá falta nessa vida, pois o propósito é a falta, a busca é a falta, o vazio, o buraco.

O design então quando pronto é uma ciranda de artefatos, de objetos, de coisas, de coisificação cujo empreendimento é garantir ao sujeito sua peculiar e indefensável sujeição ao poder. Ele acaba rindo, mas sem dentes no momento final, um riso frouxo, tolo, pequeno. Por isso o fim da vida desses sujeitos está cercado por medicamentos de todo tipo, seus únicos companheiros do sucesso e do abandono que conquistou na vida.

Nesse caso o amor é uma variante do desígnio. É possessivo, é proprietário e embora tenha o nome de amor, é apego, carência, necessidade de extensão de si num universo de abandono. E essa vitrine em que se exibe o amor, está eivada de adjetivos.

Nessa forma de vida queremos viver muito, pois estamos apegados à vida e ela não basta, já que a falta se manifesta em todos os sentidos. Então o sujeito foi desenhando o painel da sua vida, suas relações, seus desejos, sonhos e delírios, tudo formando um desígnio vital.

Já há aqueles que não se sujeitam, não admitem o ego, recusam as distinções e ironizam o sucesso. Esses são displicentes, irreverentes, nocivos para o contentamento coletivo. Suas ideias nunca se alinham com a facilidade do agrado. Não se importam com o reconhecimento e não carecem de adulação. Acabam isolados pela turminha.

Não se levam a sério e normalmente sua vida vai sendo tecida como se tivesse algum distúrbio cognitivo, pois as pessoas não entendem bem esse alheamento a tudo que é convidativo e duradouro.

São fugazes os seus desejos, quase presentes na coincidência do tempo que acontece.

Mas esse conjunto de aceitação incondicional também vai tecendo uma teia de conexões igualmente incondicionais e o seu mapa em propósito é caótico, imprevisível e sempre acolhedor. Como não se dá tanta importância assim, nada tem a defender, exceto sua solidão.

O desenho poderia ficar assim: seu amor é sem apego ou posse; teus filhos escolhem livremente o caminho deles nessa vida; os amigos não carecem de concessão; o serviço é para humanizar e não para servir ao poder; a aceitação é plena, as contingências são obstáculos provisórios ao teu bem estar; tudo que te move é amoroso e calmo; nada está no futuro, pois tudo é presente; esse é teu desenho, teu design, teu desígnio. Não deseja se impor a ninguém; não defende nenhuma verdade; não oprime teu próximo com tua vontade impositiva; aceita sem julgamentos; não deseja ajudar os outros sem que te peçam ajuda; ouve quando solicitam que tu ouça apenas; não julga, não renega, não abafa. Teu propósito na vida é amar incondicionalmente, o que equivale a respeitar todos da forma que são, com seus defeitos e maravilhas.

Arthur Schopenhauer dizia que “cada um fugirá, suportará ou amará a solidão na proporção exata do valor de sua personalidade. Pois, na solidão, o indivíduo mesquinho sente toda sua mesquinhez, o grande espírito, toda a sua grandeza; numa palavra, cada um sente o que é”. E isso só é possível pelo desenho que vamos alterando ao longo da vida, o grande painel que define nosso propósito. O desígnio de deus.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

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