O estado existe. Há séculos existe e não vislumbro uma organização social sem ele. A questão é saber a serviço de quem ele mais está.
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Não é fake news. Vi uma publicação no Facebook defendendo Ricardo Nunes do seu suposto crime. A postagem, pelo que entendi, seria uma resposta à outra, que sugeria que o valor que o dono da Ricardo Eletro é acusado de desviar, de sonegar e de lavar daria pra comprar não sei quantos respiradores e pagar mais um monte de auxílio de seiscentos reais.
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Segundo o autor da postagem, o estado é um voraz arrecadador de impostos. Certo é tentar mesmo sonegar. Esperto é quem consegue. Bem, se o Nunes conseguiu, foi pego. Mas, se não foi esperto, pelo menos tá contando com a solidariedade dalguns, seja por ter tentado ou por ter sido constrangido a ir depor na Polícia.
A acusação, como citado, não é só de sonegação. Há suspeitas de desvios e lavagens de dinheiro, repito. Mas vou ignorar essas duas últimas, já que a postagem empática ao empresário também o fez. Vou me ater à questão tributária, tão polêmica aqui no País.
Criou-se no Brasil um pensamento liberal à brasileira, com o perdão da redundância. O discurso se adapta às circunstâncias. Em dado momento, há a defesa subtendida duma extinção plena do estado. Uma volta ao comunismo primitivo, porém com riquezas a disputar. Ou um anarquismo com ganância. Sei lá, difícil definir. É um cada um por si e Deus por todos. Sim, pois no “Liberalismo à Brasileira”, Deus tem que existir. Jesus Cristo também, apesar de Suas ideias serem escancaradamente deturpadas.
Em outros momentos, porém, o estado é chamado. As grandes empresas, ditas geradoras de empregos, devem, a qualquer dificuldade financeira, serem ajudadas por ele. Os trabalhadores, por sua vez, que não são ditos como os geradores de produção que redundam em riquezas, têm que aprender a andarem sozinhos. Para os momentos de crise, precaução. Têm que ter a cultura de poupar, de saber investir, de não gastar demasiadamente. Isso tudo com um salário que mal dá para pagar as contas do mês.
A verdade é que aqueles que defendem um estado mínimo, ou, pra usar um eufemismo comumente, um “estado necessário”, querem é um estado pouco para os pobres, mesmo sendo nós quem proporcionalmente mais pagamos impostos.
A incongruência é tanta, que a postagem ignorou que a acusação em tela dá conta de que o empresário não repassou ICMS, mas cobrou dos consumidores. Isso é, a se confirmar as suspeitas, ele não caloteou o estado e repassou o desconto aos consumidores (pobres, a maioria). Ele embolsou a quantia, ficando ainda mais milionário.
O consumidor (pobre) neste caso, foi lesado duas vezes: ao pagar a taxa tributária, tornando-se transitoriamente mais pobre; e ao não usufruir desse gasto na forma de serviços públicos.
Sobre isso, a dita postagem defendia que, devido à corrupção e ineficácia governamentais, o dinheiro não iria ser empregado no combate à pandemia, como sugeria a publicação a qual respondia.
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A ideia postada toma como verdade um mero pressuposto. Sim, há corrupção no poder público brasileiro (mas será que tanto como alardeiam aqueles que utilizam esse argumento pra defender a diminuição do estado?). Corrupção esta que, na maioria das vezes, tem como sujeito ativo uma parte privada, poucos falam. Mas um crime justificaria outro? É desabastecendo os cofres públicos que vamos acabar com a corrupção ou o dinheiro mal havido só mudou de bolso?
Aqueles que defendem a sonegação, do IPTU ao ICMS milionário; ou mesmo os defensores por princípio duma diminuição da carga tributária geral, propagadores da equivocada e/ou falaciosa ideia de que o brasileiro paga muito imposto são os mesmos que vão, em algum momento em breve chamar o estado.
Vão chamar o estado pra socorrer grandes empresas, “geradoras de emprego”, eles dizem, ignorando um princípio básico da economia: pra se gerar riqueza é preciso quem a produza. Isso acontece com os trabalhos dos empregados, não com o dito “mérito” dos empresários.
Vão chamar o estado, na forma da polícia, pra “descer o cassete nos manifestantes comunistas”. Pros liberais à brasileira, todos os que não têm esse peculiar e confuso pensamento são comunistas.
E esse “neo-neoliberalismo” chegou ao ponto de defender uma possível corrupção milionária que diretamente prejudicou a população toda.
A corrupção deve ser combatida, obviamente. A eficiência no serviço público é princípio constitucional e deve ser melhorada constantemente. Mas achar que sonegar, ou mesmo legalmente diminuir sumariamente, impostos é condição pruma qualidade de vida melhor é tornar a vida dos mais pobres (aqueles que vão continuar a pagar mais impostos) ainda sem qualidade, aumentando a desigualdade social.
O estado existe. Há séculos existe e não vislumbro uma organização social sem ele. A questão é saber a serviço de quem ele mais está.
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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