Estudo que desmerece médicas pelas roupas que usam fora do ambiente de trabalho provoca discussão sobre o machismo na área de saúde e desencadeia campanha
Um estudo que desmerece a capacidade de jovens médicas pelas vestimentas que elas usam fora do ambiente de trabalho provocou discussões ao redor do mundo nesta semana. Seriam pouco profissionais as médicas que vestem biquíni?
O documento foi publicado pela renomada revista médica Journal of Vascular Surgery, focada em especialistas de cirurgia vascular. Segundo o estudo, as médicas que ainda são jovens e escolhiam usar biquínis no seu tempo livre e postar fotos nas redes sociais podem ser consideradas “menos profissionais”.
Originalmente, o artigo foi publicado em dezembro de 2019, mas acabou viralizando depois de ser incluído na edição de agosto deste ano da publicação.
Na análise, perfis online de mais de 480 profissionais foram analisados segundo alguns critérios, como tipo de roupas e fotos postadas, comentários feitos em fotos de outras pessoas e outras categorias que poderiam definir aquele médico em questão como pouco ou totalmente não-profissional aos olhos do paciente.
Como resultado, uma série de médicas e profissionais da saúde usaram as próprias redes sociais para criticar o estudo usando a hashtag #MedBikini e explicar como é possível ser uma profissional respeitada e competente independente da sua escolha de roupa para os momentos de lazer.
“A misoginia é medieval. Eu preciso usar o meu jaleco a todo momento para receber o título de ‘profissional’? Divertida, sexy, inteligente e trabalhadora podem existir no mesmo espaço. Eu posso usar biquínis no meu tempo livre e ser uma profissional competente e compassiva no trabalho”, escreveu Vera Bajaras, uma nefrologista das Filipinas.
A médica havaiana Candice Myhre fez um longo desabafo no Instagram, explicando que a “Dra. Biquíni” não medirá esforços para salvar um paciente que se acidentou em alto-mar. “Novidade: Médicas mulheres podem usar o que quiserem”, escreveu ela.
Após a reação de quase 2 milhões de médicas ao redor do mundo, tanto a revista quanto os autores do estudo pediram desculpas publicamente e explicaram que a sua intenção era alertar jovens médicos a cuidarem do que colocam disponível nas redes sociais.
A jornalista brasileira Lucia Helena, que escreve sobre saúde há vários anos, publicou o seguinte comentário sobre o estudo:
Para começar, o artigo não saiu da faculdade desconhecida na cidadezinha no meio do nada, que poderia ser honesto, mas que faria arregalar o olhar crítico. O texto já ofusca a visão porque vem da brilhante Universidade de Boston, nos Estados Unidos.
E, como se não bastasse, saiu no prestigiado Journal of Vascular Surgery. Lamento dizer, mas até o povo de Boston faz bobagem. E até revistas científicas às vezes erram e aceitam trabalhos que são ruins de doer. Sorte da ciência, azar da revista — e dos autores do disparate —, as médicas prestaram atenção e não estão deixando barato.
Tanto nas faculdades de medicina americanas quanto nas brasileiras, mais de metade dos alunos são mulheres. Mas, também, tanto lá quanto cá, o espaço mais difícil de o sexo feminino ocupar ainda é o centro cirúrgico.
Nos Estados Unidos, 35% dos médicos em atividade são mulheres. No entanto, nas dez especialidades cirúrgicas existentes no país, elas são menos do que um quarto. Na cirurgia ortopédica, não passam de 5%. A inversão só existe em ginecologia e obstetrícia — então as mulheres representam 57% dos especialistas. Em todas as escolas médicas americanas, por sua vez, só há 24 professoras titulares em departamentos de cirurgia.
No Brasil, olhando para a faixa mais jovem, até os 29 anos de idade, as médicas já são 57,4% dos profissionais. Mas são 8% de todos os neurocirurgiões brasileiros, por exemplo.
Vale eu lembrar a hashtag #MedBikini é, no mínimo, a segunda grande campanha de mulheres médicas nas redes sociais e a anterior, de 2015, surgiu justamente entre as cirurgiãs, cansadas de ouvir a seguinte pergunta: “quando vai chegar o médico?”. A hashtag, daí, foi #ILookLikeASurgeon.
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