O “novo normal” da aula remota parecia já assinalado por um efeito de sentido, uma opção semântica de “futuro antecipado” antes da crise pandêmica. Todavia, é possível contrariar o que vem se mostrando como um “futuro que chegou”, tal como uma profecia, problematizando a questão do valor do inédito na experiência com o outro.
Anderson de Carvalho Pereira*, Pragmatismo Político
Tenho visto colegas aflitos e tomados de ansiedade acerca da retomada das aulas. Este texto é em parte especialmente dirigido a estes.
Em tempos de pandemia global do novo coronavírus houve o embate de dois discursos acerca da aula como modo operacional norteador da Educação, que remexeu o debate e um possível “novo modo de ser”.
Aqueles que tentam pegar carona no “novo normal” (expressão até o momento, aparentemente à deriva, clamando por sentidos) e os que para além de muitas ressalvas percebem como o alcance de um novo estandarte de “normalidade” disfarça a manipulação de contingências de uma conjuntura já em curso antes da crise. A opção pelo segundo nos faz renitente à dominação engrenada do sentido dominante de “novo normal”.
O “novo normal” da aula remota parecia já assinalado por um efeito de sentido, uma opção semântica de “futuro antecipado” antes da crise pandêmica. Todavia, é possível contrariar o que vem se mostrando como um “futuro que chegou”, tal como uma profecia, problematizando a questão do valor do inédito na experiência com o outro.
Em uma aula convencional, temos esta experiência no ensino básico e nos seus relativos avanços sobre a concessão da fala e a (nem sempre garantida) tomada de posição pelo aluno; e no ensino universitário em que se intensifica a expectativa de que a experiência do inédito em um debate seja um dos eixos norteadores da transformação.
É a experiência do inédito que possibilita mudar de posição diante de um tema, assunto, relato, conceito. A mudança de posição, de idéia, de opinião, de visão sobre um tema, o enfrentamento da dificuldade na resolução de um cálculo complexo ou na escrita de um texto desafiador transcorre sempre com a aceitação do desconhecido e o testemunho e apoio do outro. A natureza da presença do Outro é tautológica. O outro é grande Outro, todavia. Não se reduz ao outro empírico, concreto, mas depende da alteridade do Outro, cujo diferencial está em uma relação que se estabelece.
Não houvesse esta natureza, este valor e esta envergadura com a quantidade que temos de aulas já postadas no portal youtube e que são, sem dúvida de muita valia para ampliar a capilaridade do conhecimento, dariam conta de ter resolvido todos os dilemas da Educação formal.
Diante deste cenário, contudo, sempre continuará como parte do enigma, da experiência quase telúrica de educar, a experiência do inédito também como modo de se partilhar a experiência também como transmissão do enigma de parte do já vivido. Valem em parte as indagações ordinárias: “Como você fez? Me ensina?” Em face do que a resposta, muitas vezes, é reticente porque comporta mistério.
Isto porque, calado, na memória coletiva, este mistério re-organiza (de forma também misteriosa, e aqui vale a redundância) modos de ser sempre comprometidos com a coletividade. Aqui valem duas máximas. Uma da Psicanálise sobre a transferência como fascínio, aproximação e distanciamento do Outro e a das teorias da enunciação sobre o falar de si e para si mesmo sempre pela presença de um terceiro presente/ausente na fala. Mesmo no autodidatismo e no monólogo há Outro.
É crucial que diante de todas estas nuances, estejamos aflitos e reticentes à disseminação da denominada aula remota e a sua implantação. É obrigatório também lembrar que uma dada conjuntura sociopolítica e histórica já definia o valor e alcance desta modalidade: os gananciosos do “mercado da Educação” pouco preocupados com qualidade do debate e do ensino e ávidos por mais EaD.
A escola brasileira que mal tem dado conta de defender um debate plural, com respeito aos direitos humanos, e de possibilitar o estranhamento do que parece evidente, corre o risco de atropelamento pela manipulação cínica. Vide a repercussão das fake news. Parte desta é sintoma de um mal-estar que aglutina nosso fracasso na formação de leitores.
As lives, por um lado, tem despontado em parte como requisito de produtividade do meio universitário neste período, e embora tenham podido aliviar um pouco a angústia, contam com a possibilidade de configurar públicos que não caberiam em muitos auditórios, permitindo certa sistematicidade e organização no calor do acontecimento histórico.
Junto disso, nossos colegas trabalhadores da educação básica sofrem com a pressão pelo “dever cumprido” dos “patrões” da rede privada. Por outro lado, as lives despontam neste contexto de forma preocupante como se dessem conta de recobrir o trabalho intelectual e sua natureza complexa que em parte contempla recolhimento para concentração. Sem contar que o sentido de live também faz parecer que o que fazíamos “antes” estaria em razoável zona de morbidez.
A aula presencial não é mero fetiche como se tem dito. Isto porque talvez seja um fetiche com especial valor político. Neste ponto de vista, é insubstituível porque somente com a presença concreta fazemos política e com a epifania da política podem vir transformações. A propósito, continuaríamos com este governo bárbaro caso as manifestações de rua seguissem seu curso?
Em tempos de onda de moralização autoritária das escolas “sem partido”, o avanço da aula remota pode flertar ainda mais com o autoritarismo que clama pela supressão de adversários, como sintoma do enfraquecimento da democracia e do senso de Outro. Caberia inclusive perguntar: como seria “ver” um experimento, ligar-se ou distanciar-se do outro, contemplar um quadro ou bulir com um texto poético em uma aula remota?
No geral, gabamos: “Frequentei tal museu, parque, auditório de instituições”. Sempre limitadas, as experiências remotas nunca substituirão a lotação dos parques, museus e ruas. As anódinas visitas online abrem questão também sobre o empobrecimento ainda maior da fantasia.
Esta expectativa de “novo normal” disfarça o sucateamento e os ataques de um “autoritarismo liberal” (conforme expressão de Achille Mbembe) e com o qual já sofríamos, e que tenta se reinventar nos bastidores da pandemia para naturalizar o distanciamento do Outro.
O distanciamento real misturado com o disfarce virtual faz parecer que a imposição da indiferença como modo “natural de ser só” é o que estava previsto. Seria uma nova etapa já profetizada. Entretanto, vale alertar que esta teleologia do absurdo se alinha ao esquadrão da morte da riqueza do calor do debate, debate este que incomoda a vociferação de absurdos que no Brasil atual ainda sustenta um governo anti-civilização.
*Anderson de Carvalho Pereira é professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
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