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100 anos de Florestan Fernandes: a complexidade de um intelectual a serviço do povo

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Filho de empregada doméstica, Florestan começou a trabalhar aos 6 anos e viveu os primeiros conflitos de classe dentro da casa dos patrões, que chegaram a pedir à mãe que entregasse o menino a eles. A maior luta de Florestan durante a vida foi não se afastar de suas origens

Florestan Fernandes, sociólogo e ex-deputado federal (Imagem: reprodução)

Caroline Oliveira, Brasil de Fato

Quando terminou o curso de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP), em 1944, Florestan Fernandes não saía dali como um sociólogo formado somente pelos livros. A sociologia, na verdade, chegou para Florestan primeiro por meio do trabalho, e somente depois pela reflexão. Esta é uma formulação do próprio sociólogo que permeia toda a complexidade e totalidade de seu pensamento.

Filho único de Maria Fernandes, portuguesa que chegou ao Brasil para trabalhar no campo aos 13 anos de idade, Florestan nasceu em 22 de julho de 1920 e viveu os primeiros conflitos de classe dentro da casa da família Bresser, onde a mãe trabalhou como empregada doméstica, no município São Paulo (SP). Os poucos anos ali bastaram para Florestan entender que a casa, para ele e sua mãe, era do quarto onde dormiam, no quintal, somente até a cozinha. Dali para frente, a barreira só podia ser transpassada com a permissão e o acompanhamento de um dos Bresser.

Permissão, a mesma, que não lhe foi solicitada para ter o nome trocado pelos donos da casa. Florestan, o nome de um personagem da ópera Fidelio, de Ludwig van Beethoven, não era cabível para o filho de uma empregada doméstica. Chamavam-no, então, de Vicente, que consideravam mais apropriado. “Também o nome ele não podia ter”, conta Florestan Fernandes Júnior, filho do sociólogo e jornalista.

O ponto final da experiência na casa Bresser – que anos mais tarde ele considerou essencial do ponto de vista sociológico – se deu quando os patrões pediram a Maria Fernandes que entregasse Florestan a eles. A portuguesa respondeu “só cachorro que se dá”, pegou suas coisas e foi morar em cortiços.

Diante da situação, Florestan, aos seis anos de idade, começou a trabalhar como engraxate, para ajudar na sobrevivência da pequena família. “Assim foi vida deles, vivendo com condições precárias. Todo o aprendizado dele vem desse período e ele nunca se afastou. Ele falou até que a maior luta dele durante a vida foi não se afastar de suas origens”, relata o filho. Somente aos 17 anos, depois de passar por diversos empregos, Florestan retomou os estudos, fez um curso de madureza para concluir o que hoje se conhece por Ensino Médio e ingressou na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP).

Para Miguel Yoshida, editor da Expressão Popular, compreender a origem de classe de Florestan é “fundamental” para compreender todo o seu desenvolvimento teórico. “Por mais que por durante boa parte da vida ele estivesse ligado à universidade com ocupações acadêmicas, ele nunca perdeu essa perspectiva de olhar para o mundo e para a condição dos ‘de baixo’, nunca esteve fora da perspectiva dele”. Prova disso, diz Yoshida, são os temas sobre os quais ele teorizou: a questão racial e de classe, majoritariamente.

Burguesia dependente e a prática revolucionária

A partir desse olhar, Florestan Fernandes constrói uma conexão entre pensamento e prática que permanece por todo o seu trabalho como uma tarefa política. O objetivo: fornecer as ferramentas necessárias para a classe trabalhadora conseguir transformar a própria realidade.

A preocupação central dele nos últimos 20 anos de vida é de conseguir construir uma compreensão do País que possibilite a transformação dele. Então, a teoria do Florestan nos últimos 20 anos se dedica a isso, a essa construção dessa teoria da revolução brasileira”, explica Yoshida.

O primeiro passo para a construção dessa prática revolucionária foi entender a origem das classes sociais no Brasil. Para estudar o comportamento das classes dominantes, Florestan estudo os anos da escravidão e demonstrou como a transição da Colônia até a República, incluindo a abolição da escravatura, ocorreu sem rupturas institucionais de fato. O sociólogo identifica a manutenção do padrão de dominação de classe, com o cultivo de heranças escravocratas refletidas nas dinâmicas sociais do país.

Diferente de outras ao redor do mundo, segundo a leitura de Florestan, a burguesia brasileira não precisou realizar uma revolução para concretizar o modo de produção capitalista. Aqui, o capitalismo e as dinâmicas imperialistas e de escravização se entrelaçaram para fazer surgir o que ele chama de “capitalismo dependente”.

Tal dependência faz com que a burguesia brasileira precise realizar concessões ao capitalismo central para conseguir manter qualquer tipo de relação, uma vez que não está “no mesmo pé de igualdade”. Hoje, isso se observa na desindustrialização do Brasil e na condição de exportador de commodities.

Apoiado nesta ideia, Florestan defendia que “o desenvolvimento aqui não tem uma possibilidade nacional de desenvolvimento autônomo, não tem um desenvolvimento autônomo, ele vai estar sempre atrelado às demandas desse capitalismo central”, explica Yoshida.

Nesse sentido, a proposta política da burguesia nunca abarcará as transformações necessárias para o desenvolvimento social do País, como as reformas agrária e educacional. Ao contrário, na mesma medida em que é submissa ao capitalismo central, submete as classes trabalhadoras com violência, nos mesmos moldes escravocratas.

A construção de um país pautada em reformas agrária e educacional, coloca Florestan, é tarefa, portanto, dos trabalhadores. E é aqui que entra a prática revolucionária e a educação como um dos pontos de partida para tal movimento.

Educação para a auto emancipação dos trabalhadores

Durante toda a vida, Florestan se preocupou intensamente com o tema da educação e defendeu um ensino gratuito, laico e de qualidade – não somente uma formação técnica, mas uma ferramenta de transformação social. Com acesso ao conhecimento acumulado pela humanidade e à prática militante, é possível alcançar a prática revolucionária e mudar as bases sobre as quais as classes dominantes se ergueram, defendia Florestan.

Nesse sentido, já na última década de sua vida, enquanto foi deputado (1987-1995) pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Florestan ajudou a criar as bases do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) bem como os princípios constitucionais da educação brasileira, na Assembleia Constituinte.

Segundo o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), que trabalhou o tema da educação ao lado de Florestan Fernandes na Assembleia Constituinte, o sociólogo foi responsável pela elaboração do capítulo da Constituição que trata da autonomia das universidades e das garantias de uma educação de qualidade.

Ele virou a grande referência de todos os movimentos sociais e educacionais, no Congresso Nacional. Ele foi grande a referência para a construção de uma visão constitucional da educação como dever do Estado e direito do cidadão”, afirma Valente.

Claro que Florestan é um socialista marxista, alguém que tinha conhecimento de que o pior analfabeto é o analfabeto político. Então, ele valorizava demais esse lado do conhecimento, do letramento, do direito à educação e do que significa conseguir universalizar a educação básica e ao mesmo tempo garantir a qualidade da educação com financiamento público de qualidade”, a fim de mitigar as desigualdades sociais. Para Valente, falar de Florestan Fernandes hoje, “é se contrapor a essa imensa mediocridade que nós estamos vivendo com a era Bolsonaro”.

Debaixo do meu guarda-chuva cabem todos os radicais

Amigo próximo do sociólogo, o jornalista Vladimir Sacchetta relembra uma frase que sintetiza significativamente quem foi Florestan Fernandes e como ele vivia de acordo com o seu objetivo de transformar o País: “Florestan era o Florestan, ele era uma bandeira em si”.

Durante a sua campanha para deputado constituinte, da qual Sacchetta fez parte, o lema era “Contra as ideias da força e a força das ideias”, o que sintetiza bem uma campanha que agregou pessoas de diversas origens e espectros ideológicos.

Volta e meia aconteciam tensões no PT, e Florestan vinha daquele jeito doce, gentil, educado, um homem sisudo, aparentemente, com aquela sobrancelha que vinha por cima do óculos, mas um ser humano muito doce, e dizia o seguinte: ‘Opa, espera aí, debaixo do meu guarda-chuva cabem todos os radicais’”, conta Sacchetta.

O engajamento para a transformação social nunca deixou que Florestan saísse de fato da política, mesmo dentro das universidades, onde praticava uma sociologia crítica e militante.

O papel do intelectual era ser contestador e enfrentar as dificuldades e empregar as suas ferramentas teóricas sem nunca abandonar do horizonte a possibilidade de ter uma transformação social e da criação de um mundo mais justo, mais livre e mais feliz”, afirma Sacchetta.

Em 1969, durante a ditadura militar brasileira, o preço pago foi a aposentadoria compulsória com a publicação do AI-5, quando Florestan, então, decide se exilar nos Estados Unidos e no Canadá, onde foi professor titular na Universidade de Toronto. Florestan Fernandes Júnior relata que foi um momento de “muitas incertezas” para a família.

Em cartas escritas ao escritor e sociólogo Antônio Candido, um de seus amigos mais próximos, Florestan dizia não aguentar mais o exílio e que, se fosse para morrer, preferia voltar e morrer lutando. No fim, Antônio Candido sempre o convencia a esperar mais um pouco.

Florestan volta ao Brasil, em 1972, mas só consegue voltar a dar aulas em 1978, quando Dom Paulo Evaristo Arns, o terceiro grão-chanceler da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o reabilita, mesmo com a pressão dos militares para não fazê-lo.

Tempos depois, ele parte definitivamente para a política partidária dentro do PT. “Ele aceita e diz para mim: ‘Filho, eu esperei a vida inteira por um partido de esquerda que nunca surgiu. Eu acho que não vou ter tempo de vida para esperar mais. Acho que esse partido não vai chegar tão cedo. E de todos os partidos que têm no Brasil hoje eu acho que o que está mais próximo daquilo que eu considero um partido progressista, de esquerda é o PT, por isso eu me filiei a ele e vou concorrer’”, relembra Florestan Fernandes Júnior.

A atualidade do pensamento de Florestan Fernandes

Outra missão assumida pelo sociólogo foi a construção uma frente democrática entre os partidos de esquerda e de enfrentar o autoritarismo. Ele dizia que boa parte dos progressistas acreditaram que tinham derrotado o nazismo e fascismo quando caíram Adolf Hitler e Benito Mussolini.

Estavam enganados, afirmava Florestan. “O fascismo nunca morreu. Ele falava que o fascismo é o braço armado do capitalismo. Sempre que o capitalismo se sente ameaçado, esse braço aparece. E é isso que a gente está vendo hoje no Brasil em alguns outros lugares do mundo”, relembra Florestan Fernandes Júnior.

Hoje, com Jair Bolsonaro (sem partido) na Presidência da República, bem como Donald Trump nos Estados Unidos, Boris Johnson no Reino Unido, Andrzej Duda na Polônia, entre outros conservadores e ultraconservadores, Florestan Fernandes procuraria descobrir quais erros levaram ao cenário atual, acredita Vladimir Sacchetta.

Esse era o perfil de atuação de Florestan dentro do PT, relata Sacchetta, onde ele questiona se a sigla irá se transformar um partido da ordem ou contra a ordem. “Ele discutia muito essa institucionalização do PT”, assim como as concessões feitas em nome da governabilidade em detrimento de ganhos para o povo, dentro do seu espectro da extrema esquerda.

Talvez essa questão da nossa atualidade passasse por aí: onde a esquerda errou? Porque as reformas não foram aprofundadas?”, argumenta o jornalista, relembrando a defesa de Florestan sobre a formação de uma frente única de esquerda. “É justamente o que falta hoje”, resume.

Atualmente, Florestan Fernandes também permanece vivo na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema, São Paulo, idealizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 2005. “Um espaço construído pela classe trabalhadora, tijolo a tijolo, para possibilitar a formação política de organizações populares de todo o mundo”, informa o movimento.

Para Sacchetta, que também faz parte da Associação dos Amigos da Escola Nacional Florestan Fernandes, a escola do nome não poderia ser tido melhor. “Ele está lá. Na escola, moram as minhas utopias. A última morada do Florestan. Basicamente, ele é o reitor da escola e figura emblemática que inspira a luta do MST, que é o movimento social mais importante que a gente tem, do país, da América Latina e, quem sabe, do mundo”, conclui.

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