A imaginação gera a oportunidade de nos distanciarmos das experiências automatizadas da realidade, que se apresentam como a verdade e o certo
Paulo Ricardo Moura da Silva*, Pragmatismo Político
Há algum tempo, eu li em uma postagem nas redes sociais uma frase que foi capaz de me atravessar de maneira muito singular, não me lembro exatamente as palavras que foram usadas, mas a ideia que comunicava nos sugeria que a obrigação de produzir não destruísse o nosso prazer em criar.
De um lado, temos a produção, nos moldes da racionalidade capitalista que estabelece uma reificação/coisificação das relações de trabalho e, ao mesmo tempo, das relações sociais, que automatizam e enrijecem as possibilidades da ação humana.
A nós, trabalhadores, é imposto um ritmo, isto é, uma repetição constante de ações que devem ser realizadas em um determinado período de tempo, que adestra nossos corpos e nossas mentes. Horários, prazos, metas, protocolos, procedimentos, rotina: nosso trabalho se torna a execução de tarefas sem qualquer necessidade de nos identificarmos racional e afetivamente com o que estamos fazendo. Apenas fazemos, porque, afinal, esse é o nosso trabalho.
Do outro lado, temos a criação, como atividade que requer imaginação e, por isso mesmo, questionamentos, formulação de hipóteses, experimentações e tentativas, erros e acertos, reelaborações constantes. A imaginação é para mim uma racionalidade inventiva e, desse modo, não é como o funcionamento de uma máquina, mas como uma brincadeira infantil, que é de fundamental importância, porque nos humaniza.
Certa vez, estava em um consultório médico, no qual havia uma parede com três janelas uma embaixo da outra, e, de repente, um menino de uns 5 anos saiu correndo do colo da mãe, abriu a janela que estava mais próxima ao chão, colocou uma perna para o lado de fora, sentou, ergueu as mãos na altura do peito, fechou as mãos e disse: “Mãe, olha meu carro novo. Bibiii”. Eu fiquei fascinado com sua criatividade ao ver a possibilidade de um carro em uma janela de consultório médico.
Com esse garoto, aprendi que transformação requer imaginação, porque ela permite nos descolarmos, até certo ponto, das ideias pré-concebidas socialmente, bem como das percepções de que uma situação somente pode ser vivida da maneira como sempre eu vi que situações semelhantes eram vividas pelos demais.
A imaginação gera a oportunidade de nos distanciarmos das experiências automatizadas da realidade, que se apresentam como a verdade e o certo, quando efetivamente são apenas um dos caminhos possíveis. Essa potencialidade de se colocar em uma posição distanciada frequentemente faz com que as pessoas acreditem que a imaginação seria simplesmente uma fuga da realidade.
Se realmente há a possibilidade de se alienar da realidade por meio da imaginação, é preciso também enfatizar a importância da imaginação para a transformação social. Ao nos descolarmos das práticas cotidianas, podemos criar alternativas, perceber outros caminhos, ressignificar os projetos de sociedade.
Se queremos construir outra realidade social, temos que primeiramente nos lançarmos ao desafio de imaginarmos as possibilidades de mudança efetiva, a fim de que possamos construir nossa luta coletiva para concretizar tais mudanças.
Não me parece um acaso que nossa criatividade esteja sempre sob controle com o passar dos nossos anos de vida e que tentem nos convencer de que a imaginação seja uma bobagem e, portanto, tentem desqualificá-la para melhor controlá-la. Quanto mais vamos nos tornando adultos, menos espaços e menos tempo temos para exercer nossa criatividade. O mundo capitalista vai vestindo nossa criatividade com a camisa de força do empreendedorismo, da inovação e do consumo, aspectos úteis à manutenção do sistema econômico, mas que controlam as nossas reais potencialidades de transformação no exercício da criatividade.
Entretanto, ainda há aqueles que insistem verdadeiramente na imaginação, gente perigosa para o sistema, porque eles podem criar e não apenas repetir, podem fazer outras escolhas e não apenas repetir, podem transformar e não apenas repetir. Essa gente de imaginação constrói sua existência no mundo como forma de lutar pelo direito às condições de sermos criativos, pelo direito de enxergarmos carros em janelas ou, quem sabe, janelas em muros.
*Paulo Ricardo Moura da Silva é Professor de Língua Portuguesa do IFMG/Ouro Preto.
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