Para entender um pouco melhor a história deste homem que fez história no samba em terras paulistanas, é preciso voltar a época do militarismo no Brasil.
Cinthia Filomeno*
Quando falamos do samba de São Paulo, a impressão que temos é de que, só quem é daqui, é que o conhece e que dá o devido valor. Posso dizer que há bastante verdade nessa afirmação, porque até hoje, ainda há quem acredite e que ainda use aquela triste expressão: “São Paulo é o túmulo do samba”, dito pelo genial, mas que foi infeliz ao se referir do samba paulistano, Vinicius de Moraes. Sim, depois de um tempo ele se retratou e pediu desculpas mas sabemos que, esse episódio, ficou cravado na nossa história e gravado na cabeça de muitos por décadas!
Só quem é daqui da “terra da garoa” e deste meio que sabe, o quanto que temos lutado, ano após ano, para nosso samba ser reconhecido e valorizado.
Por isso, falar de Pato N’Água hoje, é mais que um dever, é também uma forma de valorizá-lo e mantê-lo vivo na memória e história do samba.
Muitos desconhecem a pessoa que ele foi e poucos conheceram a fundo sua história. Acho que eu não me encaixo totalmente em nenhuma dessas afirmações porque, foi através de muita pesquisa (inclusive de campo), em meio ao meu processo de estudos sobre o samba paulista, que eu pude saber mais de Pato N’Água como pessoa, ao mesmo tempo que, é impossível conhecer de verdade sua história, sem nunca tê-lo conhecido.
Apitador do cordão da Vai Vai – grupo carnavalesco criado às margens do córrego da Saracura no bairro do Bexiga em São Paulo -, Pato N’Água ainda é reconhecido por muitos no mundo do samba, como um dos maiores apitadores e comandantes de bateria já visto. Era também, um excelente jogador de capoeira, além de um perfeito sambista que dançava como ninguém nas rodas de samba da cidade. Era um mestre de bateria impecável e mestre do apito como ele mesmo gostava de ser chamado.
Segundo diversos relatos, Pato era uma figura curiosa, solitária no meio de uma multidão e bem mais alto que a média dos negros do Brasil beirando os 2 metros de altura. Nesses relatos disseram que, só a presença dele no ambiente já impunha respeito, e que ele também, era um homem bravo.
Durante anos, Pato n’Água comandou o batuque do cordão da Vai Vai. Mudou de agremiação algumas vezes à medida que ia envelhecendo, mas sempre retornava para o Bexiga.
Para entender um pouco melhor a história deste homem que fez história no samba em terras paulistanas, é preciso voltar a época do militarismo no Brasil.
Em 1969, ano em que o General Médici assumiu a Presidência da República como o terceiro Presidente da República Militar do Brasil, a polícia que se tornara repressora, ditava todas as diretrizes contra a população que se manifestava contra o regime. Muitos de nós, filhos de pais que viveram a ditadura, crescemos ouvindo as histórias sobre torturas, assassinatos, sumiços, exílios, prisões arbitrárias e, que nesse período, que foi criado o esquadrão da morte, onde a polícia aplicava literalmente a pena de morte sem qualquer julgamento prévio.
Mesmo naqueles tempos difíceis em que o país se encontrava, o pessoal do samba – que já estava acostumado com a repressão policial que violentamente tentava acabar com as manifestações culturais na cidade de São Paulo – se organizava e lutava para que o batuque continuasse. Desse pessoal, surgiram grandes nomes que fizeram história nesse mundo, como a Madrinha Eunice, fundadora da Escola de Samba Lavapés, o Carlão do Peruche e Geraldão da Barra Funda, o Pé Rachado e Pato N’Água, fundadores da Escola de Samba Vai Vai, dentre outros.
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Justamente nessa época, o corpo de Pato N’Água apareceu boiando num rio em Suzano. Sua morte trágica, nunca foi muito bem explicada. Quase todas as manchetes de jornais daquela época disseram que um suposto “bandido”, negro, havia sido executado pela rota da polícia militar, porém, essa teoria de que Pato era bandido, jamais foi comprovada, exatamente porque ele não era e nem nunca tinha sido.
Quando a notícia de sua morte chegou no Bexiga, num fim de tarde, bem na hora da reza, fez-se um estrago. Todos da comunidade ficaram abalados, indignados e apavorados com tamanha violência que tirou a vida do mestre do apito. E todos choraram. Geraldo Filme, o Geraldão da Barra Funda – que esteve com ele durante todo o dia e boa parte da noite antes de sua morte – chorou muito e, junto dos seus, durante o gurufim de Pato organizado pela comunidade, cantou o samba “Silêncio No Bexiga”, que ele fizera horas antes em homenagem ao amigo.
Um dos versos da letra desse samba que Geraldo tão bem descreveu, “sambista de rua morre sem glória”, foi cantada com muita emoção na hora do enterro, pois ela descrevia muito bem a história de seu parceiro e de tantos outros sambistas que partiram sem reconhecimento, sem despedida e sem terem tido o devido valor.
Pato N’Água, um mestre de bateria impecável, ainda é pouco lembrado por aqui, se tratando da figura importantíssima que ele foi para o samba e pelo que ele representa até hoje. Dizem que ele foi uma vítima do esquadrão da morte e, por mais que esses fatos nunca foram avaliados, investigados e confirmados pelo Estado, o fato é que Pato foi violentamente assassinado, e o samba paulistano perdeu um grande mestre de bateria e o país um grande artista.
E “Silêncio no Bexiga”, tornou-se um dos sambas mais cantados nos gurufins e exéquias dos sambistas por todo o Brasil.
Pra finalizar essa leitura, deixo aqui um pedaço do parágrafo do artigo “A História do Samba de São Paulo”, que Plínio Marcos escreveu, relatando a notícia da morte do mestre Pato N’Água, num belo texto publicado no jornal “Folha de São Paulo” em 13 de fevereiro de 1977:
“O que se sabe é que a notícia chegou no Bexiga à tardinha, na hora da Ave-Maria, e logo correu pelos estreitos, escamosos e esquisitos caminhos do roçado do bom Deus. E por todas as quebradas do mundaréu, desde onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos, o povão chorou a morte do sambista Pato Nágua. E o Geraldão da Barra Funda, legítimo poeta do povo, chorou por todos num bonito samba chamado Silêncio no Bexiga“.
Logo abaixo está a letra do samba que Geraldo Filme fez para o amigo como homenagem.
Se caso você ouvir e se emocionar, não estranhe. É a tragédia que foi transformada em arte, fazendo bonito e batendo forte no peito!
SILÊNCIO NO BEXIGA(Geraldo Filme)
Silêncio
O sambista está dormindo
Ele foi mas foi sorrindo
A notícia chegou quando anoiteceu
Escolas
Eu peço silêncio de um minuto
O Bixiga está de luto
O apito de Pato N’água emudeceu
Partiu
Não tem placa de bronze
Não fica na história
Sambista de rua morre sem glória
Depois de tanta alegria que ele nos deu
Assim
Um fato repete de novo
Sambista de rua, artista do povo
E é mais um que foi sem dizer adeus
Silêncio
*Cinthia Filomeno é artista visual, pós-graduada em Fundamentos da Cultura e das Artes pelo Instituto de Artes da UNESP, escritora e pesquisadora do samba, e autora do livro Samba: Uma Cultura Popular Brasileira
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