Governo Bolsonaro pretende enquadrar jornalista da Folha na Lei de Segurança Nacional após ele afirmar que a vida do presidente não vale mais que a “de um mendigo viciado em crack”. Breve levantamento mostra que, em diversas ocasiões, Bolsonaro se referiu à morte de seus adversários políticos como uma solução desejável
Reinaldo Azevedo, em seu blog
Os bolsonaristas estão tentando incendiar as redes com o artigo de Hélio Schwartsman. Ora, quantas foram as vezes em que Bolsonaro se referiu à morte de seus adversários políticos como uma solução desejável para um impasse?
Em relação a Dilma Rousseff, como se constata no vídeo acima, foi explícito. Indagado se achava que a então presidente concluiria o mandato, disparou: “Eu espero que acabe hoje, infartada ou com câncer, de qualquer maneira”.
Antes ainda, no começo da carreira política, pregava o fuzilamento de uns 30 mil para salvar o Brasil — incluindo FHC entre os mortos.
E, a seu modo, foi consequencialista: “Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem”.
Ele considerava, em suma, que tais mortes eram um preço a pagar por aquilo que entendia ser um bem maior.
Também em nome desse bem maior, que, na sua cabeça, era a luta contra o comunismo, exaltou um torturador na Câmara.
O “consequencialismo” como norte político tem um sério problema, não é? Depende muito de quem diz estar sendo consequencialista e das armas de que dispõe para impô-lo.
Sim, uma torcida pessoal não é uma proposta política. Por isso mesmo, convém não confundir os domínios.
(continua após o vídeo)
Lei de Segurança
André Mendonça, ministro da Justiça, decidiu pedir à Polícia Federal, conforme dispõe o Inciso IV do Artigo 31 da Lei de Segurança Nacional, que abra um inquérito para investigar ‘um artigo’ — deve ser a primeira vez na história em que artigo é investigado — escrito por Hélio Schwartsman na Folha.
Mas o que fez Schwartsman? Escreveu um texto na Folha em que afirma torcer pela morte do presidente Jair Bolsonaro. Aponta os motivos: sem ele, também suas políticas públicas e escolhas deixariam de existir e vidas se salvariam.
O autor apela ao chamado “consequencialismo”: “A vida de Bolsonaro, como a de qualquer indivíduo, tem valor e sua perda seria lamentável. Mas, como no consequencialismo todas as vidas valem rigorosamente o mesmo, a morte do presidente torna-se filosoficamente defensável, se estivermos seguros de que acarretará um número maior de vidas preservadas. Estamos?”
E ele conclui que sim. Bem, considero que a tese de Schwartsman nem errada consegue ser tal o tamanho do equívoco. Digo adiante por quê. Primeiro me atenho a Mendonça.
Estupidez
Num governo em que a estupidez, com raras exceções, é regra, essa chega a surpreender pelo tamanho da bobagem. Não havendo outra disposição legal a que apelar — e não há –, Mendonça recorreu ao Artigo 26 da Lei de Segurança Nacional. Venham cá: desde quando torcer pela morte de alguém constitui calúnia ou difamação?
Não fosse o autoritarismo explícito que constitui o desejo de punir uma simples opinião, por polêmica que seja, há a tolice de tentar encontrar um tipo penal onde não há. Que punição mereceria Nietzsche, no fim do século 19, por ter escrito: “Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós!”? Na República de Mendonça, o filósofo seria considerado um caluniador da… humanidade, acho…
O ministro está querendo provocar marola nas redes sociais e, claro!, só um bobo não percebe, pretende embolar o artigo com o debate sobre a punição de fake news e daqueles que pedem o fechamento do Congresso e do Supremo. O bolsonarismo considera isso tudo liberdade de expressão.
Esse é o ministro que pagou o mico de recorrer a um habeas corpus em favor de Abraham Weintraub, investigado no inquérito aberto pelo Supremo, por dizer que os “onze vagabundos do tribunal deveriam ser presos”.
O objetivo é chegar mais ou menos à seguinte formulação: “Ah, desejar a morte do presidente é liberdade de expressão, né?, mas pedir o fechamento do Congresso e do Supremo não é?”
Debate torto
E, para não variar, estaríamos diante de um debate torto. Organizar um grupo — que estava confessadamente armado –, com financiamento clandestino, para pregar golpe de estado, indo além da palavra escrita e incitando a ação direta, bem, isso ameaça a segurança nacional, sim. Torcer para que alguém morra de uma doença? Não! Isso não é ameaça nenhuma. É só um erro.
Como tenho repetido, quem confunde crime com liberdade de expressão, como fazem Mendonça e os bolsonaristas, acabarão fatalmente confundindo liberdade de expressão com crime, como também fazem Mendonça e os bolsonaristas.
Mais de uma vez, o ministro já sugeriu que os atos contra o Congresso e o Supremo são parte da liberdade de expressão. Não! Está errado. São crimes. Agora ele vê crime no artigo de Schwartsman. Não! Está errado de novo. É manifestação da liberdade de expressão.
É evidente sua ação não dará em nada. Ele sabe disso. Mas o objetivo é causar…
Vírus não ouve nem lê
Vamos lá. Se Schwartsman escrever que Bolsonaro ou uma pessoa pública qualquer merecem, ainda que em nome de seu consequencialismo redentor, um tiro na cabeça, estará cometendo crime, sim. Trata-se do Artigo 286 do Código Penal: “Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa”.
Mas ele não fez isso. Torcer para que Bolsonaro morra de Covid-19 não incita ninguém a nada. O vírus é surdo a esses apelos. Já imaginaram se ele fosse um ser moral — há dúvidas, aliás, se é mesmo um ser vivo — e, estando do nosso lado, resolvesse fazer a seleção dos bons e dos maus? Pô, nem seria um vírus, né? Seria o próprio Deus, e já estaríamos no Apocalipse.
A torcida do articulista é irrelevante. Talvez até ajude Bolsonaro à medida que seus seguidores agora decidiram vitimizá-lo, transformando-o num pobre homem perseguido pela imprensa — porque aí o jornalista em questão vira a imprensa toda —, que quereria a sua morte. A motivação é um elemento psicológico importante no enfrentamento de qualquer doença.
A tese
Não torço para que Bolsonaro morra. Torço para que pague pelo conjunto de atos que chamo crimes — comuns e de responsabilidade.
Não comungo do “consequencialismo” como norte e menos ainda como vem expresso no artigo. A rigor, vira pau para toda obra sob o pretexto do mal menor. Estou certo de que alguns dos grandes tiranos da história poderiam se dizer “consequencialistas”. Ou alguém dúvida de que Stálin sacrificou alguns milhões na certeza de que, daquele modo, salvava o socialismo — e, pois, a possibilidade de se construir o “novo homem”? E Mao?
Por essa via, justifica-se qualquer coisa. Terroristas que se opõem a regimes e o terrorismo de Estado não teriam dificuldade em se dizer “consequencialistas”. Essas coisas requerem muito cuidado. “Torturar um terrorista para tentar saber onde está uma bomba que matará milhares se explodir é lícito?” Você sabe a resposta, leitor.
E deve saber também que convém não recorrer a situações de exceção para normatizar a vida em sociedade. Ou por outra: o consequencialismo como norte moral resulta naquilo que Maquiavel nunca escreveu: “Os fins justificam os meios”. E aí tudo é permitido.
No direito
O tal “consequencialismo”, diga-se, tem sido evocado no direito brasileiro, em suas várias esferas de operação, para justificar as maiores barbeiragens. A Lava Jato e Sergio Moro são, a seu modo, “consequencialistas”.
Perguntaram-se e responderam: “Seguindo as regras do devido processo legal e do estado de direito, o combate à corrupção será eficaz?” E concluíram que não. Fizeram o que fizeram. E estamos na lama em que estamos.
E, obviamente, nada do que escrevo aqui pode impedir uma pessoa de torcer intimamente pela morte de outra. O erro, entendo, do artigo de Schwartsman está em apelar a isso que chama “consequencialismo” para, por intermédio da morte — que seria causada pelo vírus, não pelo autor, é bom que fique claro — responder a um impasse que é de natureza politica e que foi criado pela vontade do eleitor.
E, com alguma ironia, aponto que faltou ao autor um certo consequencialismo: “Como eu contribuo para não excitar a imaginação dos bárbaros, gerando ainda mais toxinas de desinteligência, de sorte que eles não tentem transformar liberdade de expressão em crime e crime em liberdade de expressão? Escrevendo ou não escrevendo um artigo em que digo torcer pela morte de Bolsonaro?”
De todo modo, como se vê, não há erro que um crítico de Bolsonaro cometa que não seja superado, com sobras, por um bolsonarista, não é mesmo, Mendonça?
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