Três homens pobres foram condenados pela Justiça, sem provas, a mais de dez anos de prisão. Quando ocorreu o crime pelo qual foram acusados, eles provaram que estavam a mais de 70 quilômetros do local. Nada disso, porém, conseguiu convencer os humanos de farda e de toga
Caê Vasconcelos, Daniel Arroyo e Fausto Salvadori, Ponte
Vamos começar essa reportagem pedindo desculpas. É que, pela primeira vez na história da Ponte Jornalismo, vamos omitir informações em uma reportagem.
A história que você vai conhecer é a de três homens pobres condenados pela Justiça, sem provas, a mais de dez anos de prisão. Quando ocorreu o roubo pelo qual foram acusados, dois deles estavam a mais de 70 quilômetros do local e podem provar: com folha de ponto, documento escolar, testemunho de colega de trabalho, depoimento de diretor de escola. Nada disso, porém, conseguiu convencer os humanos de farda e de toga. Delegado, promotor, juiz e desembargadores preferiram acreditar nas palavras de vítimas que não viram os rostos dos ladrões e disseram ter reconhecidos os réus “pelos olhos” ou “pela voz”. Entre essas vítimas, estava uma juíza. Sua palavra, a respeito do que nunca chegou a ver, teve mais força do que testemunhos e documentos trazidos por moradores da periferia.
E por que pedimos desculpas? É que não vamos poder revelar o nome dos três condenados. Não por causa deles. Quando a reportagem foi até a Penitenciária de Guareí I, distante 186 quilômetros da cidade de São Paulo, e atravessou muros e grades para falar com cada um deles, todos queriam denunciar a injustiça que afirmam ter sofrido e dizer seus nomes para o mundo ouvir. Mas essa é uma informação que a Ponte, dessa vez, terá de esconder dos seus leitores.
A mesma Justiça que condenou os três réus sem provas só autorizou que fossem ouvidos pela reportagem com uma condição: a de que a Ponte não dissesse quem eles são. “Fica vedada a exibição de nomes e imagens que possam identificá-los”, decidiu o juiz corregedor Alessandro Viana Vieira de Paula, do Departamento Estadual de Execuções Criminais da 4ª Região Administrativa Judiciária, em 30 de janeiro, ao autorizar a entrevista dentro do presídio de Guareí.
Ao menos esse magistrado não proibiu a Ponte de fazer a entrevista, como havia feito a juíza Jovanessa Ribeiro Silva Azevedo Pinto, na primeira vez em que a Ponte tentou fazer essa entrevista, em maio do ano passado, alegando que não havia “interesse público” na reportagem. Na época, a proibição foi criticada por entidades que atuam na defesa dos direitos dos jornalistas e da liberdade de expressão, para quem a decisão era inconstitucional.
Álibis ignorados
Calças beges e mãos algemadas, os três se aproximam, silenciosos. Estamos em fevereiro de 2020. A pandemia ainda não fechou as prisões para as visitas. Uma assessora de imprensa da Secretaria da Administração Penitenciária, que acompanha a entrevista, se incomoda que os presos sejam filmados de chinelos e trata de providenciar três pares de tênis para que apareçam nas imagens bem calçados.
Não há assessoria de imprensa, porém, que consiga ocultar a frustração que os três expressam ao falar da prisão. “Acabou com a minha vida e com a vida de meu irmão”, afirma o montador de imóveis T., 34 anos. Seu irmão caçula, o estudante e auxiliar de produção, V., 22 anos, foi preso junto com ele. O terceiro condenado pelo crime, o estoquista A., 40 anos, os irmãos afirmam terem conhecido somente ali, na prisão. “Estou preso por um crime que não cometi”, é o que repetem várias vezes.
T., V. e A., mais um quarto preso, M., foram condenados a mais de uma década de prisão pela acusação de terem invadido e roubado duas casas no bairro do Caxambu, em Jundiaí, na noite de 1º de março de 2018, por volta das 20h30. Uma das vítimas era uma juíza.
No horário do crime, V. estava a 83 quilômetros dali, na escola estadual Professora Neusa Demétrio, na cidade de Taboão da Serra, onde cursa o terceiro ano do ensino médio. A informação foi confirmada pelo diretor da escola, que ainda assinou uma declaração atestando que o aluno estava ali. “Não sei de onde tiraram uma condenação de uma coisa que não fiz”, diz.
Já A. estava a 70 quilômetros do local do crime, em Moema, na zona sul da capital paulista, numa empresa de acessórios automotivos. Uma folha de ponto assinada por ele registra que havia deixado o local de trabalho às 19h. Como fazia todos os dias, pegou carona com um colega do trabalho, que o deixou às 19h40 no terminal de ônibus João Dias, próximo dali. Esposa, irmã e cunhado de A. afirmam que ele chegou em casa, na região do Capão Redondo, às 20h30, como sempre fazia.
Condenados pelos olhos
Os testemunhos e documentos foram ignorados pelas autoridades. A única prova levada em consideração foi o reconhecimento dos suspeitos, realizado mais de três meses após o crime, na Delegacia de Investigações Gerais de Jundiaí. Nenhuma das vítimas havia visto os rostos dos assaltantes, que usaram toucas ninjas, roupas pretas e luvas durante todo o tempo, mas mesmo assim disseram que podiam reconhecer os ladrões. Para o delegado Carlos Eduardo Barbosa Soares, foi o que bastou.
Presos em 12 de junho de 2018, os quatro suspeitos foram levados à delegacia. “Puseram um saco de lixo na nossa cabeça, com fita crepe, uns rapazes do lado, eles desalgemados e nós algemados, e aconteceu o reconhecimento. Falou que reconheceu nós pela bolinha da vista”, conta V. “Não entra na minha mente isso daí. Como você reconhece uma pessoa pela bolinha de vista depois de tanto tempo que passou?”, pergunta.
O reconhecimento dos réus foi cercado de irregularidades. A primeira ocorreu antes do reconhecimento presencial, quando os policiais civis mostraram fotos dos quatro suspeitos para as vítimas.
Ao fazer isso, os policiais erraram duas vezes, conforme os procedimentos corretos para o reconhecimento descritos por Gustavo Noronha de Ávila, doutor e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e um dos principais especialistas brasileiros em psicologia do testemunho. Para começar, segundo Ávila, “jamais deve ser feito o reconhecimento com apenas uma pessoa ou foto, em função de sua intolerável carga de sugestionabilidade”. Além disso, o reconhecimento de alguém que viu apenas os olhos de um criminoso deve ser considerado suspeito, já que vítimas de roubo têm dificuldade de memorizar detalhes até quando os ladrões estão de cara limpa, porque costumam olhar apenas para a arma, um comportamento conhecido como gun weapon effect (efeito da arma de fogo).
Durante o reconhecimento presencial, apenas um quinto homem, que não era suspeito, foi colocado entre eles. O Código de Processo Penal determina que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.
Ouvido pela Ponte, o advogado criminalista Hugo Leonardo, vice-presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), afirma que o reconhecimento feito a partir dos olhos é “de uma fragilidade absurda”, levando em conta os disfarces usados pelos ladrões e os traumas do assalto. “Evidentemente, com esse nível de disfarce, combinado ao nervosismo da vítima, nós podemos esperar um critério irrisório de certeza no reconhecimento”, afirma. “Jamais isso deveria ser o suficiente para levá-los à prisão.”
Os policiais civis de Jundiaí percorreram um caminho tortuoso para chegar aos suspeitos, analisando as chamadas telefônicas feitas à torre de celular mais próxima da casa da juíza, entre 19h e 22h da noite do crime. Dentre todas as chamadas, selecionaram sete linhas telefônicas cadastradas em outros municípios. Uma dessas linhas estava registrada em nome do pai dos irmãos T. e V.. Como T. já tinha passagem pela polícia, os policiais suspeitaram dele. Não fica claro, contudo, como chegaram a até A. No caso de M., a polícia afirma ter rastreado um dos celulares roubados em Jundiaí e apreendido o aparelho com ele — M. diz que recebeu o telefone de um cliente de sua loja.
Para Hugo Leonardo, os indícios levantados pela investigação policial são frágeis. “A possibilidade da ausência de vínculo desses sujeitos com os fatos é total”, afirma.
As provas, contudo, pareceram bastante sólidas para o promotor de justiça Jocimar Guimarães, que denunciou os réus uma semana após o reconhecimento. Eles responderam a todo o processo presos, mas acreditaram até o último momento que seriam absolvidos no julgamento.
“Contei tudo certinho o que aconteceu, olhei no olhar dela, pensei que ia me mandar embora e não ia ser condenado”, conta T. “Quando eu fui para o fórum, eu estava louvando, porque eu tinha certeza que ia embora, ninguém mais justo que o juiz, ela vai me absolver quando ver as provas”, relembra A.
Não foi como imaginavam. Em 28 de junho do ano passado, a juíza Jane Rute Nalini Anderson, da 3ª Vara Criminal de Jundiaí, condenou os réus por roubo qualificado. A. pegou 18 anos de prisão, T., 15 anos, e V., 13.
Na sentença, a juíza afirmou que “as vítimas não teriam qualquer interesse em incriminar os réus” e que “o fato das vítimas, especialmente Roberta [a juíza assaltada], não ter visto totalmente o rosto dos réus no momento do delito, não tem o condão de enfraquecer a prova trazida ao bojo dos autos, porquanto as vítimas os reconheceram pela compleição física e pela voz”.
Os réus recorreram da sentença e, em segunda instância, um acórdão (decisão tomada por mais de um magistrado), relatado pelo desembargador Fernando Simão, manteve a condenação de todos, afirmando que, “em se tratando de roubo, a fala da vítima, quando coerente, como é o caso dos autos, merece credibilidade” e que as vítimas “não provaram nada do que alegaram”. O desembargador nem mencionou o fato de que as vítimas nunca viram os rostos dos ladrões, nem os documentos e testemunhos apresentados pelos réus mostrando onde estavam no horário do crime. Ainda assim, o acórdão reconheceu um erro da juíza ao estabelecer as penas, diminuindo o tempo para todos: 16 anos e oito meses para A., 14 anos e três meses para T. e 11 anos e onze meses para V.
Casado e pai de dois filhos, A. sente falta da família e, enquanto espera o dia da sua saída, faz planos. “Eu sei que vou estudar. Se Deus abençoar, eu vou fazer direito e vou continuar minha vida. Não vai ser fácil, não, mas não vou desistir”, promete. Ele tenta tirar forças da injustiça: “Querendo ou não, toda essa situação me deu uma força para fazer uma série de coisas que tinha deixado de escanteio, e eu vou alcançar todo os meus objetivos quando sair daqui, se Deus quiser”.
Para os dois irmãos, V. e T., o que mais dói é ver o efeito da prisão em sua família. V. conta que em todo final de semana recebe a visita dos pais, e é sempre a mesma cena triste. “Meu pai quando já entra, já começa a chorar, eu já começo a chorar também.” O pai comenta o que fizeram com o filho, o filho fala como é difícil de entender o que aconteceu, e o pai diz que está lá fora, lutando para provar a inocência deles. E pai, mãe e filhos se abraçam.
“Acabou a vida do meu pai e da minha mãe. Meu pai era forte e saudável, se você vê ele hoje…”, lamenta T. Também pai, ele prefere não receber visitas do filho pequeno: “Meu filho não quero num lugar desses”.
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