A pós-verdade e a lacração
No momento em que buscamos respostas (verdades) rápidas e precisamos sustentar posições numa realidade maniqueísta
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Alguns teóricos da Sociologia e da Filosofia, entre outras ciências humanas, defendem que vivemos na era da pós-verdade, posterior à pós-modernidade. Seria, este conceito, aquele em que a verdade não existe. Ou só é verdade aquilo que consideramos que seja. Um quê de platonismo com princípio nazista, entre outras ideias que poderíamos intertextualizar. Talvez por isso a propagação de fake news. Uma tentativa de tornar real uma falsidade, com vistas a beneficiar determinado grupo.
Relacionando-se com a ideia, há a teoria de Zygmunt Bauman, A Modernidade Líquida. Nela, o autor polonês considera que as relações sociais estão carentes duma concretude. Elas se esvaiam como água entre os dedos.
Faço essa relação pois, considerando Bauman, é mais fácil de se convencer as pessoas a crerem numa mentira. Ou, se não isso, pelo menos de acreditarem no predicado atribuído a algo.
E chego com isso onde quero. A “lacração” nas redes sociais.
A internet deu vez e voz todos que desejarem por elas se expressarem. Dos idiotas, passando pelos repostadores de fake news (por má-fé ou ignorância) até cientistas realmente responsáveis com aquilo que a ciência, e não a massiva afirmação, crê como verdade, ainda que passível de modificações, muitas vezes.
Na era dos memes, em que figuras substituem frases; e que uma ideia tem que ser sintetizada em 140 caracteres, perdeu-se liquidamente entre os dedos a relação entre o interlocutor e a forma como a mensagem lhe chega. Na efemeridade de agora, há de se tentar prender o consumidor da mensagem pelo prévio sensacionalismo: “leia até o fim”, “assista até o fim”, “por essa ninguém esperava…”… um texto com estrutura mínima, como aprendemos no quarto ano, com três parágrafos: início, meio e fim é passado batido facilmente. Extrapola em muito os caracteres de um tuíte. Se não há uma lúdica figura no meio pra acompanhar, torna-se maçante só de ver.
Os vídeos, embora muito populares, pois cada um de nós é cinegrafista amador do quotidiano com nossos celulares, também não podem exceder os pouco minutos. O ideal são segundos.
Pra burlar esses preciosos três minutos que poderíamos estar navegando e procurando outro vídeo (esse curto, pelo amor de Deus) ou um meme engraçado, os emissores utilizam-se de outra ferramenta: a edição com a parte da “lacração”. Num debate de eternos vinte minutos, se recorta uma resposta de dois minutos. Retira-se do contexto e diz que fulano “jantou” ciclano. “Eu morri depois que assisti”, podem reforçar ainda.
No momento em que buscamos respostas (verdades) rápidas e precisamos sustentar posições numa realidade maniqueísta, esses verdadeiros videozinhos são cômodos e saciadores. Se, em meio às respostas aparecer um cavalo dando um coice em alguém, metáfora duma resposta certeira, ficamos alegres tal crianças assistindo a desenhos animados.
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Não buscamos bons embasamentos pras nossas ideias. Aliás, além de invertermos a lógica (primeiro escolhemos um lado, depois procuramos um porquê), qualquer meme ou vídeo de cavalinho dando coice nos serve como sustentação teórica. E repostamos o recorte com uma frase sensacionalista de efeito.
Os reflexos dessa liquidez nas relações não só interpessoais como com as coisas todas aliada com lógica de primeiro eu acredito e/ou formulo minha hipótese, depois busco elementos pra sustentá-las é algo que, nesta pandemia, já estão à mostra, com a negação da ciência, por exemplo.
Mas isso é assunto pra outro texto. Este vou encerrando por aqui, sob pena de ficar “longo” demais.
Espero que o editor faça uma chamada daquelas pra pôr à publicação.
Vai dizer, lacrei com este texto, né
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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