Estudante de 20 anos começou a investir em ações durante a quarentena e imaginou ter perdido R$ 4 milhões na bolsa, mas seus cálculos estavam errados. Tragédia tem provocado apelo pela reforma das corretoras de valores online
Robin Wigglesworth e Richard Henderson
Tradução de Paulo Migliacci
Financial Times
Alex Kearns era um jovem comum de 20 anos de idade. Tocava trombone, estudava na Universidade do Nebraska e, como milhões de outros americanos, passou a investir em ações como passatempo ou para ganhar algum dinheiro, quando o coronavírus causou o fechamento das escolas e locais de trabalho. Infelizmente, sua incursão juvenil ao mundo do investimento terminou em tragédia.
Em 12 de junho, em sua casa em Naperville, Illinois, Kearns se suicidou por acreditar ter perdido quase US$ 750 mil (R$ 4 milhões) em uma aposta frustrada no mercado de opções realizada por meio da Robinhood, uma corretora de valores online que se tornou emblemática de uma nova era no investimento pessoa física.
Em um bilhete que deixou para sua família, Kearns afirmou que “não tinha ideia do que estava fazendo” e que jamais havia “pretendido aceitar um risco desse tamanho”. O pior é que Kearns parece ter confundido prejuízo potencial em uma das pernas da operação de opções com o resultado da aposta geral –e com isso acreditou erroneamente ter sofrido perdas da ordem de US$ 730.165 (R$ 4.001.304). Na verdade, sua conta tinha um saldo positivo de US$ 16 mil (R$ 87,6 mil).
O trágico episódio ilumina o lado sombrio do recente boom nas operações de investimento por pequenos investidores e nas ofertas das corretoras online –por exemplo transações gratuitas, opções, financiamento de baixo custo e a possibilidade de adquirir pequenas frações de ações–, que atraíram mais gente aos mercados. Alguns observadores se preocupam por uma nova geração de corretoras eletrônicas ter transformado a experiência de investimento em algo semelhante a um videogame, com atualizações constantes sobre lucros e prejuízos, e a mídia social alimentando o frenesi.
“Quanto mais me aprofundo no estudo da coisa, mais zangado fico”, disse Bill Brewster, analista da Sullimar Capital, de Chicago, que é marido da prima de Kearns e fala em nome da família. “Eles estão empurrando as pessoas na direção dessa dinamite financeira”.
A disparada no número de pequenos investidores beneficiou muito as corretoras. A Robinhood atraiu três milhões de novos usuários no primeiro trimestre, elevando seu total de clientes a 13 milhões. A Schwab, ETrade e Interactive Brokers, somadas, criaram 1,5 milhão de contas novas nos cinco primeiros meses do ano, quase o dobro do total do período em 2019. A TG Ameritrade, que revela dados trimestrais, criou mais de 500 mil contas no primeiro trimestre –três vezes o total criado no período no ano passado.
Vlad Tenev e Baiju Bhatt, cofundadores da Robinhood, se declararam “devastados” pela morte de Kearns, e prometeram que a companhia expandiria os recursos educacionais relacionados às operações de opções, alteraria o app de forma a mostrar claramente a exposição financeira dos usuários ao realizar operações de opções e que estudaria adotar novos critérios antes de permitir operações com opções sofisticadas pelos clientes.
O deputado federal Sean Casten, do Illinois, na semana passada discutiu a tragédia com Jay Clayton, comissário da SEC (Securities and Exchange Commission, órgão de regulação do mercado de ações dos EUA), que disse que as autoridades regulatórias estavam estudando como aumentar a transparência do mercado. “Li a respeito no final de semana, e é terrível”, disse Clayton.
“Precisamos fazer alguma coisa para garantir que esse tipo de coisas não aconteça”. Casten mais tarde tuitou: “Democrata ou republicano, Alex poderia ser o filho de qualquer um de nós. É hora de o Senado agir”.
Brewster elogia as mudanças propostas pela Robinhood, mas continua preocupado com as transformações que ela e outras plataformas promoveram nas operações, atraindo pessoas mais jovens, mais inexperientes e potencialmente vulneráveis.
“É o começo de uma longa jornada, não o final”, diz Brewster. É necessária uma discussão ampla sobre o lado negativo de oferecer a investidores comuns acesso irrestrito aos mercados, ele acrescenta. “Será que cruzamos o Rubicão e chegamos a um território perigoso? Acredito que sim”.
ÍCARO DOS VIDEOGAMES
Charlie Munger, vice-presidente do grupo Berkshire Hathaway renomado pelo mau humor, deixou clara a sua opinião sobre os “day traders” e as pessoas que facilitam suas atividades, na assembleia anual de acionistas do grupo editorial Daily Journal, cujo conselho ele preside.
“Para mim é mais ou menos o equivalente a induzir um bando de jovens a começar a usar heroína”, ele disse aos participantes. “É realmente estúpido”. Munger não estava muito distante da verdade. Pesquisas do neurocientista Hans Breiter mostram que a mesma parte do cérebro ativada por drogas como a cocaína também é ativada quando uma pessoa antecipa um ganho financeiro. E isso adquiriu peso ainda maior na nova era de plataformas de operação online.
As cores em neon e a interface elegante da Robinhood, bem como sua mensagem que convida os usuários a “abraçar as transações de opções”, representam uma mudança de passo com relação aos sites relativamente caretas de rivais mais antigas como a ETrade e a Charles Schwab. Os novos usuários recebem uma ação gratuitamente –usualmente em valor de menos de US$ 10 (R$ 54)– para começar a operar, e confetes surgem na tela para comemorar a primeira transação de cada usuário com ações e com opções.
“Os paralelos entre os videogames e as operações dos ‘day traders’ são cada vez mais próximos”, diz Andrew Lo, professor de finanças do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). “Para muitos jogadores de videogames, especialmente os mais jovens, que não estão acostumados a investir e não compreendem plenamente o significado de prejuízos e de lucros significativos sobre sua psicofisiologia, as consequências adversas poderiam ser significativas”.
De acordo com os estudos conduzidos por Lo sobre investidores, as consequências incluem medo, ansiedade, arrependimento, frustração e decepção, e até mesmo sintomas de distúrbio de estresse pós-traumático, para aqueles que sofreram grandes prejuízos no início de suas carreiras.
No passado, abrir uma conta em uma corretora de valores online costumava ser trabalhoso e demorado. Mas a tecnologia avançou e, hoje, criar uma conta pode demorar apenas alguns minutos, nos Estados Unidos. A aprovação da corretora em geral demora um dia, abrindo as portas para operações com ações e cotas de fundos negociados em bolsa. Os investidores podem em seguida solicitar autorização para operar com instrumentos mais avançados, como opções ou transações de “margem” realizadas com dinheiro emprestado pela corretora.
Por exemplo, os investidores que operam por meio da Robinhood podem assinar como clientes “ouro”, o que custa US$ 5 (R$ 27,4) ao mês depois de 30 dias de experiência gratuitos. Isso permite que eles realizem apostas maiores com dinheiro emprestado pela corretora. As únicas restrições são regulamentos federais que requerem que um investidor tenha pelo menos US$ 2 mil (R$ 10,9 mil) em sua conta na corretora e “um perfil de investimento adequado à participação em operações de margem”, o que a Robinhood determina por meio de algumas perguntas sobre a experiência, objetivos e sensibilidade a riscos do investidor.
Os analistas dizem que o uso de opções pode ser especialmente perigoso. Opções são um derivativo financeiro que pode dar exposição muito maior à queda e alta de uma ação ou índice de ações, depois de um pagamento inicial em muitos casos mínimo, o que pode multiplicar os ganhos mas também tem o potencial de agravar as perdas.
O frenesi no mercado de investimento pessoa física já ajudou a deflagrar um pico nas operações de opções este ano, com o valor total de contratos em circulação agora avaliado em US$ 5,2 trilhões (R$ 28,4 trilhões), mais ou menos o dobro do nível registrado cinco anos atrás, de acordo com o banco Goldman Sachs. Essa soma equivale a 20% do valor em circulação no mercado de ações para as companhias que formam o índice S&P 500, a referência para o mercado de ações de primeira linha dos Estados Unidos.
Pesquisadores da seguradora alemã Allianz determinaram que os contratos únicos –mais populares junto aos pequenos investidores pessoa física– responderam por 13% dos contratos de opções do S&P 500 de março para cá, ante cerca de 8% um ano antes. Para algumas das ações populares entre os “day traders” –por exemplo as da Chipotle, Amazon e Tesla–, os contratos únicos respondem por entre 20% e 30% do volume de opções em circulação.
“Basta passar alguns minutos nas comunidades mais populares do Reddit para fazer uma ideia ampla da histeria atual do mercado e dos riscos que os novos investidores de varejo estão assumindo”, afirmou a Allianz em um relatório publicado em junho.
As corretoras eletrônicas informam os investidores de que operar com opções envolve riscos significativos e não é apropriado para todos os investidores, e encaminham as pessoas que desejam aprender mais a um estudo publicado 26 anos atrás –e atualizado pela última vez em 2012. Nele, a Options Clearing Corporation, que se encarrega da compensação de transações de opções, explica os potenciais percalços dessas operações.
As corretoras de varejo têm a obrigação de estabelecer níveis diferenciados de operações de opções para oferecer aos clientes, que solicitam permissão para se mover de degrau em degrau com base em fatores como o tempo de experiência que eles têm no mercado de opções, seu patrimônio líquido, seus ativos líquidos, e sua idade. As corretoras eletrônicas tipicamente têm três ou quatro degraus diferentes para essas transações, mas não revelam os requisitos para cada um deles, de modo a evitar que os usuários manipulem o sistema.
As corretoras também estão sujeitas a regras que requerem que os investidores classificados como “day traders”, nos termos de uma definição regulatória de quatro transações de compra e venda de uma ação durante cinco dias úteis, mantenham pelo menos US$ 25 mil (R$ 137 mil) em ações em suas contas. As corretoras afirmaram, em declarações ao Financial Times, que respeitam estritamente as regras regulatórias, garantem que apenas os investidores com a experiência requerida tenham acesso às estratégias de opções mais complexas, e oferecem muitos recursos gratuitos de educação aos investidores.
O fenômeno dos investidores pessoa física vem sendo tão forte que mesmo os investidores profissionais tiveram de se adaptar às distorções que ele causa no mercado. Max Gokhman, diretor de alocação de ativos da Pacific Life Fund Advisors, uma administradora de investimentos dos Estados Unidos, diz que agora se vê forçado a considerar o impacto dos investidores pessoa física sobre companhias que se tornaram populares entre os investidores cotidiano –por exemplo, companhias de aviação ou a Tesla.
Gokhman comparou os investidores profissionais a pilotos de jumbos, e os investidores de varejo a Ícaro, a figura mitológica grega que voava com asas de cera. “Sabemos que podemos mudar de altitude para cima e para baixo, e temos sistemas sofisticados para alterar nossa exposição”, disse Gokhman. “Mas Ícaro só sobe, se aproximando mais e mais do sol, até que Ícaro –no caso os ‘day traders’– venha inevitavelmente a cair”.
OS RISCOS DAS OPÇÕES
Mesmo alguns “day traders” veteranos estão chocados com o frenesi atual. Marcello Arrambide, que comanda a Day Trading Academy, cujo objetivo é treinar e direcionar operadores promissores para sua plataforma de operações, SpeedUp Trader, acredita que a atual euforia do mercado, e os “day traders” que ela inspirou, vão terminar em lágrimas.
“As barreiras agora são tão baixas que qualquer pessoa pode entrar e se considerar capacitada. No momento, não há como perder, e esse é o problema”, ele diz. ‘A quantidade de pessoas que serão varridas do mercado quando ele despencar será apavorante”. Arrambide se recusa a ensinar os investidores a usar opções, preferindo se concentrar em ações e contratos futuros, e favorece restrições ao uso de opções por pequenos investidores, tendo em vista a complexidade e os potenciais obstáculos. “Mas se não for o investimento em ações, vai ser outra coisa qualquer”, ele acrescenta. “As pessoas só querem enriquecer rápido”.
Terrance Odean, professor de finanças na Universidade da Califórnia em Berkeley, que pesquisou sobre os “day traders”, diz que mais educação é necessária. “Se a pessoa está investindo com dinheiro supérfluo, com dinheiro que ela pode perder, é assunto dela. Mas você não comete suicídio por perder dinheiro que poderia perder”, ele diz. “Minha esperança é de que a vasta, vasta maioria dos investidores que estão comprando e vendendo a descoberto sem proteção compreendam o risco, mas presumo que alguns não o façam… não seria horrível dar cinco minutos de educação às pessoas”.
Estudo após estudo, em diferentes países, demonstra que a maioria esmagadora dos “day traders” termina perdendo dinheiro.
Um recente estudo sobre investidores pessoa física no Brasil entre 2013 e 2015 constatou que 97% das pessoas que operaram por pelo menos 300 dias perderam todo o dinheiro investido. Apenas 1,1% dos investidores tiveram lucros superiores ao valor do salário mínimo brasileiro, e apenas 0,5% deles conseguiram lucros maiores que o salário de um caixa de banco iniciante.
O impacto das operações sobre a saúde das pessoas também pode ser forte. Grandes quedas nos mercados de ações estão associadas a uma piora da saúde mental, picos de consumo de álcool e acidentes de automóveis fatais envolvendo álcool, de acordo com um estudo pela Universidade de Chicago.
Investir pode parecer uma atividade sedentária, mas o estresse pode ter efeitos fisiológicos, igualmente, como pressão sanguínea mais alta, disse Lo.
“Investir, operar no mercado, é uma atividade fisiologicamente desgastante”, ele diz. “Você pode achar que não, porque estará sentado à sua mesa, gritando ordens no telefone ou operando eletronicamente. Mas o estresse que isso impõe ao corpo humano é muito significativo”.
PARA A FAMÍLIA, RESTAM PERGUNTAS
Brewster diz que ninguém na família conhece outras razões para que Kearns possa ter escolhido se suicidar. Ele só conhecia o jovem universitário como alguém que sempre brincava com os filhos dos parentes nas reuniões de família, mas em março ele procurou Brewster para conversar sobre ações, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos), e as perspectivas da economia.
“Parecia que a vida dele estava bem ordenada… Foi a primeira vez que conversamos como adultos”, ele diz. “Agora isso nunca mais acontecerá”.
A perda o mobilizou, e Brewster agora quer promover um debate mais amplo sobre os efeitos colaterais da transformação do investimento em jogo, que acompanhou a chamada “democratização” do investimento, na terminologia de seus proponentes. A tragédia de Kearns pode ser singularmente horrível, mas Brewster se preocupa com a possibilidade de que os problemas que ele enfrentava estejam longe de ser incomuns, dado o frenesi recente entre os “days traders”.
“Creio que as pessoas estão cometendo erros imensos e arruinando seu futuro financeiro”, ele diz. “E as consequências sociais podem ser imensas no futuro”.
Siga-nos no Instagram | Twitter | Facebook