Até o último indígena!
Luís Felipe Machado de Genaro*, Pragmatismo
Político
Não ocorreram apenas uma, duas ou três, mas centenas de vezes, nas mais diferentes regiões da América Latina, o aviso alto e claro de que as desigualdades sociais e econômicas históricas do continente frente a pandemia do COVID-19 colocariam em risco populações de maior vulnerabilidade, como trabalhadores precariazados, moradores de comunidades periféricas, ribeirinhos e indígenas. Agora não está mais claro, pois é um fato. Está ocorrendo.
Entre tantas tragédias cotidianas, a mais longa e sofrida: o continuado genocídio indígena. A característica latente do continente latino-americano. Iniciado com a invasão ibérica nos idos do século XVI, nunca deixamos de exterminar a cultura e os corpos indígenas. A pandemia só veio escancarar um terror já naturalizado.
Mesmo sob os governos progressistas da dita “onda rosa” sul-americana, a continuidade da matança nos moinhos de moer gente foi uma realidade. De nada adianta partidos e movimentos à esquerda negaram tais fatos com tamanha desfaçatez. Hoje, após a guinada à direita e extrema-direita no continente – região acometida por mais um golpe de Estado paramilitar, agora contra um presidente indígena, Evo Morales, em 2019 – assistimos lideranças assassinas perpetuarem o extermínio ao seu extremo.
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Genaro
Contudo, as comunidades indígenas se organizam e resistem. Como professor de História de uma cidade interiorana brasileira, tive a chance de participar duas vezes de Comissões Étnicas Regionais Indígenas, também em 2019. Em ambos os encontros em duas comunidades diferentes, três palavras ficaram gravadas na minha memória: aprendizado, esperança e resistência.
Há organização e força entre eles como jamais observei em outros ambientes. Não obstante, o ataque voraz e rasteiro não cessa, seja pelo extrativismo e exploração legal (através de latifúndios) e ilegal de suas terras; contínuo trabalho escravo ou análogos à escravidão; destruição ambiental; atos políticos bárbaros de racismo e descaso como os de Jair Bolsonaro, no Brasil, Jeanine Áñez, na Bolívia, e Alejandro Giammattei, na Guatemala; ou pelo puro e simples preconceito.
Hoje, em toda a América Latina e não só no catastrófico Brasil, como mostrou reportagem recente do The Intercept, a vida dessas populações – 45 milhões de latino-americanos que, na sua maioria, abandonados pelas autoridades públicas de seus respectivos países – já não vale absolutamente nada.
Triste reconhecer que não fomos capazes de impedir um genocídio de séculos, muito menos secar os rios de sangue que não param de fluir de aldeias, tribos e comunidades. A pandemia do COVID-19, no entanto, veio nos mostrar de forma escancarada duas assertivas: a primeira é de que não deixamos de ser um continente de infortúnios como apenas há alguns anos tínhamos sonhado. Nunca deixamos a mentalidade colonizadora de lado, a mesma que dava aos cães os bebês indígenas já mutilados. Depois, que não haverá trégua. A luta pela vida dessas comunidades ocorrerá até a queda do último indígena. Até a última flecha ser lançada.
Foto: Ricardo Stuckert
*Luís Felipe Machado de Genaro é historiador, mestre em história
pela UFPR e professor da rede municipal de Itararé