Fazendeiro do Acre destrói sítios arqueológicos pré-históricos para plantar milho
Patrimônios culturais milenares foram destruídos por fazendeiro que é presidente da Federação da Agricultura do Acre. Iphan acionou MPF e a Justiça Federal para apurar o caso
Vestígios arqueológicos possivelmente produzidos pelo homem pré-histórico que viveu na região entre 800 e 2.500 anos atrás foram destruídos por tratores para a plantação de lavouras, em Capixaba, no interior do Acre.
Os desenhos geométricos conhecidos como geoglifos estavam na Fazenda Crixá II, do fazendeiro Assuero Veronez, presidente da Federação da Agricultura e Agropecuária do Acre (Feac). Ele alega que foi ação de um funcionário à sua revelia. O Ministério Público Federal (MPF) do Acre já abriu investigação para apurar o dano ao patrimônio arqueológico da União.
A área da fazenda foi embargada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O da Fazenda Crixá é um dos 523 geoglifos cadastrados pelo órgão somente no Acre. De acordo com o processo aberto pelo Iphan, a área onde está o sítio arqueológico foi impactada pelo plantio de milho e tem sinais de colheita recente com uso de maquinário. O Iphan constatou que as estruturas de terra foram impactadas, bem como a presença de extensas plantações de milho no entorno. Conforme o relato dos técnicos que estiveram na área, o terreno foi nivelado por arados, aterrando as valetas e mutilando as muretas das estruturas de terra (geoglifos).
Os técnicos identificaram vestígios arqueológicos, como fragmentos cerâmicos na superfície durante a fiscalização. “Destaca-se que os vestígios encontrados compõem, evidentemente, apenas um diminuto amostral do que deve haver em termos de material arqueológico na área. Ademais, deve-se considerar também que o sítio está localizado em uma área de alto potencial arqueológico e é bastante provável que haja outros materiais arqueológicos, além daqueles visualizados”, diz o documento.
O relatório informa que o sítio arqueológico tem “indubitável significância pré-histórica” e, quando foi feito o estudo para o tombamento, em 2007, o local foi considerado em ótimo estado de preservação, com até 75% de integridade. No documento encaminhado ao MPF, onde está em curso investigação sobre a destruição do patrimônio, o Iphan pede que seja apurado se houve concessão de licenças ambientais para as atividades agrícolas naquela área da fazenda.
A denúncia do estrago foi feita pelo paleontólogo Alceu Ranzi, especialista no estudo de geoglifos da Amazônia e que conhece os desenhos há 20 anos. Ele usa imagens de satélite para os estudos. “Esse geoglifo da Fazenda Crixá foi um dos primeiros que fotografamos, em 2001. Estou sempre fazendo anotações e revisando e, ao fazer esse trabalho na semana passada, vi que o geoglifo Crixá estava arrasado”, disse. Segundo ele, as valas têm 10 metros de largura e de dois a três de profundidade, atrapalhando o trânsito de máquinas pesadas. “Imaginei que o proprietário devia ter passado o trator para deixar tudo plano.”
O pesquisador comunicou o fato ao Iphan e fez representação ao MPF. Técnicos do Iphan foram à área no último dia 27, após receber a denúncia. O paleontólogo lembrou que em abril de 2001 foi aprovado o Projeto Geoglifos – Patrimônio Cultural do Acre, com a catalogação de centenas de registros desses monumentos pré-históricos. “É um desafio do poder público gerenciar esse acervo. Vários aspectos precisam ser avaliados, entre eles o uso da terra onde ocorrem os geoglifos, para que os mesmos não sejam vistos como um impedimento para as atividades agrícolas e pecuárias e sim como uma oportunidade de geração de emprego e renda”, disse.
“Só soube depois”
O fazendeiro Assuero Veronez disse que adquiriu a fazenda há alguns anos por ser vizinha a outra propriedade sua. “Tomei conhecimento de que nela havia um geoglifo, uma estrutura de sítio arqueológico. Eu mostrei para meu funcionário que gerencia os trabalhos na fazenda e falei que aquilo tinha de ser preservado. Há um ano, quando fomos fazer agricultura, por conta dele, diante das dificuldades para trabalhar com as máquinas, ele resolveu aterrar as valas e nivelar o terreno.”
O fazendeiro contou ter tomado conhecimento do fato muitos dias depois de ter acontecido. “Eu só soube depois e admoestei (o funcionário), mas estava feito. Não havia muito o que fazer naquela altura. Estou assumindo toda a responsabilidade pelo erro cometido pelo operador do serviço. A área já foi embargada pelo Iphan, eu fui notificado e vão fazer uma nova vistoria em 15 dias. Vou me manifestar formalmente, mas já adianto que estarei à disposição do Iphan para cumprir as determinações que eles passarem sobre a possível recuperação do geoglifo ou pelo menos a mitigação dos danos.”
Veronez minimizou a proporção do estrago. “Entendo a importância do sítio arqueológico, embora tenha mais de 800 desses geoglifos na região onde está minha fazenda. Vamos mitigar ou reparar os danos causados, mas a impressão minha é que para efeito de pesquisas não há tanto prejuízo, pois a vala foi aterrada, mas os objetos que podem ser encontrados nas escavações ainda estão lá. Sob esse ponto de vista não há prejuízo. Poderia se alegar sobre o turismo e as belezas cênicas dos desenhos e que isso se perdeu, mas existe uma quantidade grande de geoglifos até mais bonitos que podem ser aproveitadas para esse fim. Lamento profundamente o ocorrido e estou à disposição das autoridades para cumprir o que for determinado.”
‘Cada um é único como uma obra de arte’, diz pesquisador sobre geoglifo destruído
O paleontólogo Alceu Ranzi, que há 20 anos se debruça sobre os geoglifos da Amazônia, considera “impossível” recuperar o sítio arqueológico destruído por arados para facilitar a lavoura, em Capixaba, no Acre. Os geoglifos, registro da pré-história amazônica, são mesmo muito abundantes na região, mas cada um tem sua própria história, segundo Ranzi. “Cada um é único, como uma obra de arte”, disse.
De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) apenas no Acre são 523 geoglifos já identificados. Muitos podem ainda estar encobertos pela floresta amazônica. Ranzi mantém um arquivo dos achados com imagens do Google Earth coletadas periodicamente. “Chama a atenção a monumentalidade e a perfeição geométrica. Esses homens da Amazônia dominavam a geometria ao mesmo tempo em que Pitágoras elaborava o seu teorema. A monumentalidade é tanta que estão registradas em imagens de satélites.”
Ele disse ter evidências de que sua construção se iniciou ao menos 1.500 anos antes de Cristo e foram locais habitados até o ano de 1300. As linhas que conformam as figuras geométricas são trincheiras com até três metros de profundidade e 11 metros de largura, acompanhadas por muretas externas, compostas pela deposição do solo escavado. Por causa das dimensões, só é possível ter uma visão da forma dos geoglifos através de sobrevoo ou pelas imagens de satélites.
O secretário-geral da Ong SOS Amazonas, Miguel Scarcello, vê a destruição do geoglifo no Acre inserida no contexto atual da Amazônia, de desmatamentos, incêndios, garimpos e problemas fundiários. “Faz parte do mesmo pacote da falta de capacidade para cuidar desses atributos todos. Em áreas públicas, essa gestão já é muito difícil, imagina na área privada, em que o proprietário tem de ser responsabilizado.” Conforme Scarcello, a estrutura do Iphan não dá conta de manter o patrimônio sob vigilância e proteção. “São três ou quatro pessoas para um território imenso. É igual à gestão ambiental, uma pessoa para 800 mil hectares. Não tem como dar conta.”
No caso dos geoglifos, pesa também a falta de conhecimento sobre a importância história e cultural desses achados, segundo ele. “Há uma ignorância total da importância disso por quem detém a propriedade dessas áreas. Pouco se propõe no sentido de possibilitar que essas maravilhas sejam vistas publicamente. Em todo o mundo, muita gente está indo a esses lugares para conhecer, mas isso não acontece no Brasil.”
Agência Estado