Tributação de 12% sobre livros proposta pelo governo Bolsonaro dificultará ainda mais acesso à cultura e educação no Brasil. Desde 2004 vigora uma lei que desonera a indústria do livro. Enquanto isso, igrejas e grandes fortunas permanecem com imunidade tributária
Bruno Vaiano, Super Interessante
Livros podem ser uma fonte de renda fenomenal para um país. Mas não é por meio da cobrança de impostos. As cifras que o governo obterá com a taxação de obras impressas em curto prazo são muito inferiores à riqueza que o Brasil poderia gerar em longo prazo se essas obras circulassem. É como matar a galinha dos ovos de ouro para fazer uma canja bem magra – em vez de manter o bichinho vivo e bem alimentado para que ele forneça o metal precioso por anos. Países desenvolvidos alicerçam suas economias em conhecimento, e não plantações de soja.
Primeiro, vamos repetir a notícia: Livros são isentos por lei do Pis/Pasep e do Cofins desde 2004. Paulo Guedes e companhia querem unificar essas duas contribuições em um novo imposto sobre valor agregado, chamado Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), cuja alíquota seria de 12% – e então, tirar a isenção do mercado editorial. A proposta ainda será submetida a votação no Congresso.
“[O aumento de preço] ainda não foi quantificado, até porque o encaminhamento da proposta ao Congresso é muito recente. Mas claro que haverá elevação no preço dos livros, que impacta o mercado editorial como um todo. Além disso, a taxação pode inviabilizar as atividades de livrarias e distribuidoras”, diz Vitor Tavares, presidente da Câmara Brasileira do Livro, ao portal G1.
Ninguém nega que o País precise de uma reforma tributária, mas usá-la de pretexto para taxar livros é apenas um remendo em uma planilha de Excel – um exemplo de má-gestão. Fechar as contas de um país com dinheiro de editoras que já se viram nos trinta para sobreviver é um ótimo jeito de garantir que o país continue sem fechar suas contas no futuro. Vamos explicar o porquê em tópicos.
O fantasma da pirataria
Para começo de conversa, aumento de preço geralmente incentiva a pirataria. Quem era adolescente no Brasil em 2010 sabe o número de lojas de bairro que vendiam jogos de Playstation 2 por R$ 10. A informação não é um bem material, ela pode ser reproduzida indefinidamente. Alguém que possui um arquivo em PDF de um livro salvo em seu computador pode enviá-lo a quantas pessoas quiser. O problema é que esse arquivo não nasceu pronto. Ele passou pela mão de tradutores, editores, designers, revisores, e depois foi enviado a uma gráfica.
Quando a pirataria se alastra no setor editoral – muito mais frágil do ponto de vista financeiro que a indústria de games e o cinema – as editoras evidentemente vendem menos. Não sobra caixa para pagar todos esses trabalhadores e colocar novas obras no mercado (em especial obras de baixa tiragem, que têm um público pequeno e especializado). O resultado são prateleiras menos diversificadas. De que adianta os livros que já existem serem distribuídos online gratuitamente se isso destrói empregos e impede o lançamento de obras novas – tornando nosso catálogo irremediavelmente desatualizado em relação ao de outros países?
A isso se somam dois problemas. O primeiro é que 95% dos brasileiros não falam sequer o básico de uma língua estrangeira – só 1% da população é realmente fluente em inglês. O segundo é que, dos 273 milhões de falantes de português pelo mundo, 205 milhões são brasileiros – e dos 68 milhões restantes, 57 milhões vivem em países com IDH menor que o nosso (esses 11 milhões restantes, obviamente, são a população de Portugal).
A consequência dessa numeralha toda aí em cima é que a esmagadora maioria dos livros que nós lemos foram feitos aqui mesmo. Se diminuir o ritmo de tradução de obras para o português no Brasil, não há ninguém para traduzi-las por nós. Em comparação, os cidadãos de um país pequeno como o Uruguai, cuja produção local é inevitavelmente modesta em comparação à nossa, têm acesso às obras publicadas por todas as editoras espanholas e latino-americanas. Já os EUA contam não apenas com sua própria produção – que já é monumental –, mas também importa obras da Inglaterra, da Austrália, da Nova Zelândia…
A blindagem dos livros contra a pirataria é que eles são objetos que geram apego e afeição. Uma pesquisa realizada pelo Pew Research Center em 2016 revelou que 65% dos leitores americanos haviam lido um livro impresso pelo menos uma vez em 2015, e 38% deles se recusa a ler livros em qualquer formato digital. O mercado de ebooks cresceu entre 2011 e 2014 porque era novidade – mas, desde então, estagnou com menos da metade do mercado conquistado.
Porém, com uma alta de preços e a crise econômica desencadeada pela pandemia, não é improvável que livros-texto universitários e outras obras com finalidade técnica, que não geram muito amor da parte do público-alvo, passem a ser alvo mais frequente de pirataria – afinal, eles já são os campeões da ilegalidade. Esses livros são pirateados mais frequentemente porque são mais caros, e são mais caros porque empregam muito mais gente nos bastidores. Ou seja: quanto mais complexa é obra baixada ilegalmente, pior fica o balanço da editora.
Os leitores tendem a reservar o dinheiro, se houver dinheiro, para as obras que leem por prazer. Mas nem isso é garantido, já que os dados de pirataria no setor aumentaram como um todo. Em abril de 2020, o sindicato nacional dos editores de livros pesquisou 4.010 títulos de livros na internet e encontrou 13.528 links com seu conteúdo pirateado integralmente. Um aumento de 15% em relação ao mesmo mês de 2019.
A falácia de que o livro é consumido apenas pelos ricos
Em defesa da medida, Paulo Guedes argumentou o óbvio: que é melhor taxar produtos consumidos por ricos porque eles têm dinheiro para arcar com os impostos. O primeiro erro da afirmação é que livros não são consumidos só por ricos. O segundo é pressupor que dê para construir um país decente adicionando mais uma barreira ao acesso do conhecimento pelos pobres. Luiz Schwarcz, editor da Cia. das Letras, resumiu bem em um artigo na Folha de S. Paulo:
“Na mais recente Bienal do Livro no Rio de Janeiro, da qual participaram 600 mil pessoas, grande parte era de jovens da classe C. Na Flup (festa literária das periferias), os dados são ainda mais eloquentes: do público total do evento, 97% se declaram leitores frequentes de livros, 51% têm entre 10 e 29 anos, 72% são de não brancos e 68% pertencem às classes C,D e E.”
Esses dados demonstram que, com as políticas de acesso à educação e cultura dos governos FHC e Lula, jovens de classe C puderam finalmente se matricular no ensino superior (com frequência, em universidades públicas) e adquirir um interesse genuíno pelo consumo de livros. Essas pessoas podem não ser a principal fonte de sustento das editoras. Mas sem dúvida são a fonte que mais cresce. Afinal, são jovens recém-chegados às livrarias, cujos pais e avós não tiveram acesso às mesmas oportunidades.
Em resposta, Guedes afirmou – de maneira bem genérica, sem entrar em méritos práticos – que pretende dar livros para a população de baixa renda. O problema é que população de baixa renda não vai exatamente prosperar com os péssimos livros didáticos oferecidos nos colégios públicos brasileiros, nem com quaisquer obras paradidáticas escolhidas de antemão pelas autoridades (que eram o provável alvo da declaração).
É complicado que o pouco envolvimento que as pessoas de baixa renda têm com leitura além dos livros didáticos gire em torno de escolhas feitas pelos governantes, e não por si próprias. E mesmo que o Ministro da Economia tivesse outras intenções em mente, como algo na linha de um cartão vale-livros, a formulação da frase indica que ele ignora algo fundamental:
As pessoas só constroem conhecimento de verdade quando têm liberdade para mergulhar nos assuntos que as interessam, escolher que obras vão adquirir e interpretá-las com base em outras leituras. Conhecimento não é decorar uma porção de nomes e datas; conhecimento é ter repertório e liberdade para pensar criticamente sobre o mundo. E isso, sim, é uma máquina de fazer grana, melhor que qualquer imposto.
As grandes economias do mundo se sustentam com geração de conhecimento, e não de commodities
Os EUA só têm a maior economia do mundo porque, após a Segunda Guerra, eles encabeçaram um dos maiores e mais valiosos surtos de produção científica e cultural da história da civilização (abastecido, em muitos aspectos, por cientistas e intelectuais europeus que se refugiaram do outro lado do Atlântico para fugir do conflito).
Uma coisa está diretamente associada à outra. Para comprovar esta afirmação, basta olhar o ranking das dez empresas mais valiosas do mundo. Na ordem, elas são Apple, Google, Microsoft, Amazon, Facebook, Coca-Cola, Disney, Samsung, Louis Vuitton e McDonald’s. De onde vem a riqueza desses pesos-pesados?
Boa parte das empresas da lista aliam duas virtudes. Uma é ter um corpo de funcionários que atue na vanguarda da produção de conhecimento – o que envolve captar e manter com salários generosos gente talentosíssima, com currículos invejáveis em áreas como matemática, física, design, marketing, ciência da computação etc. Outra é manter por perto pessoas criativas, que tenham um bom repertório cultural, saibam associar conceitos aleatórios e tenham boas sacadas enquanto tomam banho.
Formar cidadãos com esse perfil é difícil na prática, porque exige dinheiro e políticas públicas eficazes. Mas, a teoria por trás da prosperidade não tem segredo: crianças precisam de boas escolas – e acesso a livros, internet e discussões frutíferas em casa desde a infância. A ciência e a cultura precisam ser vistas como fontes de prazer e fascínio, e não como obrigações monótonas. Quantos engenheiros não se formaram depois de ver a chegada da Apollo 11 à Lua pela TV?
O caso extremo é a Disney. Discussões sobre imperialismo cultural à parte – essa é outra discussão, que exigiria um artigo também longo –, a prosperidade da Disney advém não de celulares de última geração, mas do bem imaterial mais antigo da civilização: histórias. As jornadas de uma heroína como Moana, ou de uma lenda nerd como Luke Skywalker, consistem, em seus elementos fundamentais, na mesma jornada percorrida por Ulisses na Odisséia de Homero.
O desprezo anunciado da gestão Bolsonaro com os cursos de humanas sinaliza um governo incapaz de entender a importância da literatura – embora boa parte da população brasileira assista novelas ou séries em serviços de streaming todas as noites. Os roteiristas, produtores, cenógrafos, atores etc. por trás dessas produções monumentais (que, além de girar a economia, garantem uma parcela razoável da saúde mental e do bem-estar das pessoas) não tiraram essa criatividade do nada. Muitas figuras fundamentais nos bastidores do audiovisual, de Tati Bernardi a Neil Gaiman, são originalmente escritores.
Dificultar o acesso a livros, então, é o caminho mais rápido para formar um Brasil pouco competitivo no setor terciário, incapaz de exportar produtos tecnológicos e culturais valiosos. Um país, em resumo, que depende do conhecimento alheio para sobreviver.
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