Luís Felipe Machado de Genaro*, Pragmatismo
Político
Muitos chegaram à conclusão de que já não importa mais dialogar no catastrófico Brasil de 2020. Há enquetes de tragicomédia, artigos de opinião em jornais da grande imprensa e cenas cotidianas compartilhadas nas redes que evidenciam isso. Uma das principais virtudes do universo da política se dissolveu. Linhas de sangue foram traçadas e riscadas profundamente em limites sufocantes e cada vez mais estreitos.
A polarização se tornou a regra enquanto embasbacados e paralisados os progressistas dos mais diferentes campos, partidos e movimentos não sabem o que dizer e fazer perante o aumento da popularidade de um ser abjeto como o “não-presidente” da República e as inações de um Ministério da Saúde sem ministro. Tudo isso imersos numa das maiores crises sanitárias da História.
Observamos muita gente comparar o Brasil com seriados, filmes ou livros de ficção distópica – realidade fictícia onde males sociais e políticos são potencializados. Observamos pessoas desesperadas por não saberem mais o que fazer perante a barbárie cotidiana. Não sabemos mais como, para quem e de que forma denunciar o que está acontecendo. Faço um post crítico em minha rede social? Saio brigando e mostrando fontes históricas e fatos científicos aos meus familiares? Coloco minha cabeça na janela e grito desesperadamente?
A informação dos grandes meios de comunicação, quem diria, vem aliviar, pois precisamos saber o que está acontecendo, mas também nos corrói lentamente. Em tempos sombrios como o que vivemos ficamos sedentos por informação crítica, objetiva e imediata – meios alternativos com textos e artigos críticos também nos acalentam, mesmo que brevemente. É quando nos inunda a tristeza e nos indignamos quietos, sentados e impotentes. Mesmo assim não saímos de frente de nossos celulares e notebooks. As páginas de notícias e as muitas abas fixadas continuam ali – às vezes sem querer.
Em diferentes regiões do país, o caos. Trabalhadores rurais sem-terra (pertencentes ao MST), assentados e cultivando a terra no que poderia ser – e agora será! – um latifúndio improdutivo são ameaçados, violentados e despejados; diversas etnias indígenas sendo alvos de garimpeiros e madeireiras (muitas vezes ilegais), sem contar a “mão abençoada” de comunidades religiosas neopentescostais que exploram, espoliam, maltratam e matam os nosso povos originários e suas culturas milenares; a precarização do mundo do trabalho que enfraquece a cada dia a vida de centenas de milhares de brasileiros.
Muitos já não compreendem a angustia que sofrem e a sua razão de ser, não enxergam horizontes ou expectativas, não projetam um futuro por que esse futuro não mais existe, labutando para garantir o pão e o teto. Inexistem projeções de uma vida e trabalho dignos (com carteira assinada e direitos trabalhistas, entretenimento e cultura aos finais de semana ou um curso em uma universidade pública). O precariado se espalha pelas grandes metrópoles brasileiras assoladas por um vírus que se apossou dos corpos e mentes dos mais vulneráveis e ceifa centenas ininterruptamente, dia após dia.
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Genaro
Sem perceber ou querer já naturalizamos as mortes pela pandemia do COVID-19 como naturalizamos as mortes de dezenas, centenas e milhares desde os tempos coloniais. Somos um território onde reinam os privilégios de uma minoria parasitária e antinacional; onde a democracia é geograficamente delimitada e a divisão de classes a cada dia se torna mais escancarada e abissal; somos, finalmente, o país onde o absurdo e a barbárie são a regra e a memória é curta. Não conseguimos saber quando o fim começou.
Teria sido na eleição de Jair Bolsonaro? No golpe jurídico-parlamentar contra a presidenta Dilma Rousseff? Nas heterogêneas manifestações de junho de 2013? Na conciliação de classes dos governos Lula? Na chamada “justiça de transição” após 21 anos de ditadura militar?
Já nos acostumamos com o fim, seja com a morte “acidental” do menino negro periférico noticiado por asquerosos programas policialescos, seja com o espancamento e morte de uma mulher por seu marido, geralmente o velho “cidadão de bem”, ou mesmo crianças maltrapilhas encostadas nas calçadas, dormindo embaixo de pontes ou “onde dá” – lá no brejo da cruz. Enquanto isso, aluguéis cada vez mais caros, prédios e terrenos vazios e proprietários em busca da velha especulação imobiliária assassina. Resultado: um número exorbitante de sem-tetos se avoluma nos espaços urbanos.
Já nos acostumamos com o fim justamente por que chegamos ao fim da linha – aquela mesma linha riscada com sangue e bem delimitada que tanto nos sufoca.
Sem coordenação política, tendo em vista que governadores, prefeitos e câmaras decidem por si só o destino de suas localidades, e orientados implicitamente (e também de forma explícita, que fique claro) pelo “não-presidente” da República para que tudo retorne “ao normal”, somos levados a questionar se, de fato, vale à pena lutar, se indignar, debater, dialogar, demonstrar irritação, se distanciar, se isolar ou gritar desesperadamente por novos rumos. Há um sentimento nervoso que a tal normalidade carrega um ar pútrido, pesado e indecifrável – não há normalidade por que não há mais rumo para o “novo normal”.
Sujeitos que poderiam dar ao povo brasileiro esperanças falam consigo mesmos em suas lives e entrevistas dentro de uma bolha amorfa, seguindo velhas cartilhas que não mais se sustentam, como a perigosa conciliação de classes. Alguns falam de “frentes amplas” contra o fascismo bolsonarista que se espalha como fogo em um terreno seco, lançando manifestos e notas de repúdio. Artistas cansados, mas ativos, cantam e denunciam o mesmo Brasil de seus anos de chumbo, como se para lá tivessem retornado.
Se a “frente” fica “ampla” demais abarcamos inimigos históricos do povo; o “manifesto pela democracia” roda em grupos de WhatsApp sem sentido ou propósito concreto; notas de repúdio e uma baforada de ar são a mesma coisa. Do outro lado? Bilionários ficando mais ricos, listas de professores e policiais antifascistas produzida pela própria “inteligência” do governo, destruição inigualável de florestas, etc. Marcas próprias e legítimas do fim brasileiro.
As lideranças à esquerda falam sozinhas; movimentos sociais estão desarticulados; o número de mortos aumenta incessantemente; as universidades públicas podem fechar as portas em 2021 graças ao corte orçamentário milionário do “não-presidente”; o pensamento odioso, reacionário e autoritário é elevado à enésima potência; desmonte das instituições públicas, privatização de estatais e a diplomacia subserviente aos interesses transnacionais do imperialismo estadunidense se escancaram como projeto explícito; o povo marginalizado, periférico, indígena, homossexual, negro, além de estudantes, professores, artistas e toda a classe trabalhadora do campo e da cidade enxergam apenas a brutalidade dos dias, a barbaridade dos atos cotidianos, a violência das palavras, o veneno que cobre as plantações, as queimadas que destroem florestas e o obscurantismo que mina o conhecimento científico.
Cruzamos a linha? Chegamos ao fim?
Gostaria de projetar e imaginar uma série de ações e reflexões que poderíamos fazer para retroceder, evitando a continuação do fim, mas não consigo. Outros já o fazem à sua maneira. É sufocante observar o que ocorre cotidianamente e não redigir, não colocar no papel (ou nas telas e redes) a denúncia e o alerta de que podemos cavar mais fundo, irmos além do fim anunciado e vivido.
Ninguém sabe como recomeçar. Imagino que professoras e professores, jornalistas, intelectuais, lideranças políticas e sociais inúmeras dentro do campo progressista também não conseguem – e se imaginam não sabem como concretizar. A angústia e o sofrimento tomam conta quando notamos que os fascistas nos roubaram a linguagem, deturparam a memória histórica, sumiram com os nossos sonhos, tomaram o nosso futuro de assalto e nos deixaram nus, falando sozinhos e presos em um eterno presente cheio de mágoas, ressentimento e tristeza. Não há vergonha em admitir que socialistas, comunistas, nacionalistas legítimos, trabalhistas e progressistas de toda a sorte não enxergam no hoje uma saída.
Enquanto escrevo – e muitos escrevem – morrem negros e negras pelas forças policiais do Estado, morrem indígenas, campesinos assentados e quilombolas em suas regiões (sempre) ameaçadas e são violentadas mulheres e homossexuais. Professores e artistas críticos se tornam alvos, inimigos de Estado. Alunos, sementes subversivas que não poderão germinar. A vida brasileira segue o seu fluxo macabro no fim sem fim. E a linha de sangue continua a se estreitar, até haver somente sangue – e nada mais.
Foto: Índios Xucuru-Kariri em Palmeira dos Índios, Alagoas (Ricardo Stuckert)
*Luís Felipe Machado de Genaro é historiador, mestre em história
pela UFPR e professor da rede municipal de Itararé