Popularidade de Bolsonaro não vem apenas do auxílio emergencial, dizem analistas
Quase 120 mil mortes por coronavírus, denúncias de corrupção envolvendo familiares e membros do governo, demissão de ministros “estrelas”, falas aparentemente desastrosas: o que justifica a popularidade de Bolsonaro? Especialistas explicam
Mais de 115 mil mortes por coronavírus, hospitais superlotados, suspeitas de corrupção envolvendo familiares, demissão de ministros “estrelas”, falas aparentemente desastrosas: nada disso foi capaz de derrubar a imagem de Jair Bolsonaro (sem partido) em pesquisas de popularidade.
Na contramão do interligado caos político, social e sanitário, a aprovação do presidente bateu recorde: conforme o último levantamento do Datafolha, publicado em 14 de agosto, o índice de brasileiros que julgam o governo ótimo ou bom saltou de 32% para 37% – maior número desde o começo do mandato, em janeiro de 2019.
A reprovação de Bolsonaro (soma de quem acha o governo ruim ou péssimo) recuou significativamente, de 44% para 34%. O maior impacto foi no Nordeste, região que menos votou nele, onde o índice de ruim ou péssimo caiu 17 pontos (de 52% para 35%).
Também houve queda acentuada, de 13 pontos, entre os mais pobres (de 44% para 31%), na parcela menos escolarizada (de 40% para 27%) e entre os mais jovens (de 54% para 41%).
Diante dos números, logo especulou-se que o recorde de aprovação se devia fundamentalmente à autopromoção sobre o auxílio emergencial de R$ 600 (Bolsonaro foi contra a medida, mas o governo faz propaganda como se a autoria fosse dele).
Estudiosos ouvidos pelo ‘Brasil de Fato’ concordam que o sequestro da ideia do pagamento tem influência, mas apontam que é raso resumir o êxito popular de Bolsonaro a uma só causa, reduzindo a vontade política da população mais pobre a um simples bônus financeiro.
Um fator é ponto comum entre as análises: a estratégia de comunicação bolsonarista está funcionando melhor do que a da oposição – inclusive a respeito do auxílio emergencial.
Com ou sem fake news (há um inquérito no Supremo Tribunal Federal que investiga a participação do presidente na disseminação de mentiras), as redes comandadas pelo governo e por apoiadores de Bolsonaro têm mais alcance e mais efetividade para a população comum, diagnosticam pesquisadores.
Bolhas e autocrítica
Vinícius do Valle, doutor em Ciência Política e pesquisador de camadas sociais, considera que estamos vivendo uma “crise da razão” e, portanto, é necessário, antes de tudo, admitir que Bolsonaro é uma figura com força popular e parar de tratá-lo como um lunático.
Para o cientista, o presidente conquistou a confiança de muita gente reforçando características muitas vezes colocadas como críticas por opositores. “Bolsonaro é visto por grande parte da população e, especialmente para o seu eleitor, como um político diferente dos demais por ser verdadeiro. Isso implica o fato de ele muitas vezes falar coisas que consideramos absurdos”, afirma o doutor.
Segundo Valle, o discurso simplista e imediatista do presidente tende a conversar melhor com a população em geral, ainda mais durante a pandemia, quando ela busca soluções fáceis para um problema urgente.
“A direita está mais colada com os interesses imediatos, enquanto a esquerda está preocupada com noções mais abstratas. Enquanto a esquerda passou muito tempo falando de democracia, por exemplo, ou das injustiças das nossas instituições, para a grande maioria da população essas instituições democráticas nunca foram, de fato, democráticas”, analisa.
O pesquisador afirma que é necessário que a esquerda faça uma autocrítica sobre o alcance dos discursos às camadas mais populares a população. Ele entende que os políticos de oposição alimentaram uma segmentação e uma centralização de discurso incapazes de furar as “bolhas” da internet.
“Muitas vezes a esquerda está muito preocupada com a polêmica do dia do Twitter, gastando uma energia que ela poderia estar usando para a organização das pessoas nas bases. Dentro disso, a gente vê pautas que têm um eco dentro da esquerda, mas que, para a população comum, não tem. Como a apropriação cultural, como o lugar de fala da jornalista ou da antropóloga. São questões que não estão no imaginário social popular”, opina Valle.
Para ele, as bolhas sugam energia para si mesmas e enfraquecem o diálogo. “Acho que está faltando diálogo. Esse diálogo tem que ser feito para além da internet, para além das bolhas que estão ativas e gastando energia com a polêmica do dia. Tem que ser feito nas bases, no cotidiano das pessoas. Por que as igrejas evangélicas têm tanto espaço nas periferias? Porque elas estão respondendo a demandas efetivas das pessoas nesses lugares.”
Discurso político, discurso científico e toalha jogada
A filósofa e matemática Tatiana Roque, coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro e vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, considera que o discurso político de Bolsonaro se sobrepôs ao discurso científico da oposição.
Na opinião de Tatiana, as falas calcadas em minimizar a covid-19 foram erroneamente combatidas pelos políticos opositores com discursos técnicos, científicos. Para ela, as falas do presidente ecoam para além das camadas que recebem o auxílio emergencial porque as pessoas querem soluções “milagrosas”, imediatas, e tendem a acreditar nelas.
“Ele fez um discurso anticiência no lugar do político, da autoridade política. Do outro lado, a gente tinha que ter um discurso opositor que fosse também político. A gente não pode opor a ciência a política. Isso foi um erro de como o debate público se colocou – ficou de um lado a política, de outro lado a ciência. A ciência não é para isso. É para embasar as decisões políticas”.
Tatiana considera que a narrativa do governo venceu também em razão de governadores e prefeitos terem “jogado a toalha” e cedido à pressão dos setores econômicos. Para ela, a proximidade das eleições fez a diferença.
“Em relação à narrativa da pandemia, eu acho que uma das coisas que mostra que ele [Bolsonaro] ganhou a narrativa foi o comportamento dos governadores e prefeitos. Ele estava tendo um enfrentamento com os governadores e prefeitos, no início, e depois os governadores e prefeitos jogaram a toalha. Tinha uma pressão de vários setores sociais para que isso acontecesse. Como governadores e prefeitos estão interessados na eleição, eles viram que isso poderia prejudicar a popularidade deles”.
Naturalização da tragédia, campanha permanente e WhatsApp
A longa duração da epidemia de coronavírus no país – o primeiro caso nacional foi registrado há seis meses – também jogou a favor de Bolsonaro, segundo o doutorando em Comunicação Ícaro Joathan, que, em parceria com Hébely Rebouças, analisou as redes sociais de Bolsonaro por três anos e meio, durante a campanha à presidência.
Para ele, o tempo e a necessidade de tocar a vida faz com que as pessoas naturalizem a tragédia em curso, o que alimenta a estratégia de comunicação adotada pelo bolsonarismo desde o começo da pandemia, de normalizar a situação e apostar na economia.
“Naturaliza-se a situação que a gente está vivendo e, do ponto de vista da comunicação, o que o Bolsonaro pregou foi exatamente a normalidade, a naturalização, o continuar vivendo como a gente vivia antes. Acabou sendo o que aconteceu, com uma quantidade absurda de mortes, com impactos absurdos de pessoas perdendo parentes, mas se normalizou. A vida está voltando ao normal”.
A partir da análise da forma com que Bolsonaro usa as redes sociais, Ícaro afirma que, desde quando era deputado federal, o político usa uma estratégia de “campanha permanente” que tem que mostrado efetiva.
“Ele está sempre trabalhando com essa ideia de que há um inimigo, um rival a ser combatido, e está polarizando o discurso, se colocando em um polo a favor da população, a favor do Brasil, contra determinado inimigo, que pode ser o PT, o establishment. Apesar de ser um político com mais de 30 anos ocupando cargos eletivos, o Bolsonaro segue se apresentando com um discurso antissistema”, explica Ícaro.
Ele ressalta que, para dar vazão a essa campanha, o presidente conta com o apoio de uma estrutura comunicacional poderosa: as redes sociais não oficiais de divulgação. “No Twitter, Facebook e Youtube, você tem uma profusão de canais e perfis de extrema direita em uma velocidade muito maior do que os de esquerda, sempre ressaltando que há uma suspeita, do ponto de vista legal, de quem financia esses movimentos”.
Entre as redes sociais usadas para fomentar a popularidade de Bolsonaro, uma se destaca como peça-chave. Segundo o pesquisador, é no WhatsApp que o bolsonarismo se estabelece e se reproduz com maior força.
Segundo pesquisa divulgada pelo Senado Federal no fim do ano passado, o WhatsApp é a principal fonte de informação de 79% dos brasileiros – e, neste terreno, há amplo domínio dos disseminadores do presidente, de acordo com Ícaro.
“É uma ferramenta que cumpre um papel importantíssimo da circulação da informação, no debate público no Brasil. Não vemos um envolvimento, uma estratégia de como utilizar essa mídia pelos partidos de esquerda ou até os de centro-direita. Até o momento em que eu tinha mapeado, na campanha presidencial de 2018, você tinha mais do que o dobro de grupos de apoio ao Bolsonaro do que qualquer outro candidato”, descreve o comunicólogo.
Mais do que o alcance, o segredo da ferramenta está na sensação de confiabilidade, aponta o pesquisador. Nos “grupos de zap” familiares, o bolsonarismo fura as bolhas e entrega a mensagem do presidente a todas as camadas.
“Se você recebe essa informação a partir de um contato, do grupo da família ou de um grupo da igreja, que é de uma pessoa que você confia, aquilo acaba influenciando na questão da formação da opinião. É uma informação aparentemente apolítica. Quem está mandando essa informação para mim, por WhatsApp, não é o candidato, o partido, o PSL. É o meu amigo, meu primo, meu cunhado, meu chefe, meu pastor.”
Ícaro só vê uma solução para combater o bolsonarismo: a união da esquerda em prol de estratégias de comunicação mais “sustentáveis” a longo prazo, que abram diálogo com camadas inalcançadas e que aceite o apoio de figuras públicas que se manifestam contra Bolsonaro e não são ligados à esquerda tradicional, como Felipe Neto e Anitta.
“Se a esquerda, por conta de um debate mais ideológico, abrir mão desse time de apoio a gente só tem a perder. Esses são perfis que conseguem trazer pessoas de fora da bolha para ver qual é a versão, o posicionamento dos partidos de esquerda dentro do debate político contra o governo federal”, diz.