"O Mistério do Samba” como documento da nossa cultura
É imensamente gratificante saber que uma parte da história do samba foi contada através de uma competente e respeitável artista, que não mediu esforços e nem tempo para fazê-lo
Cinthia Filomeno*
Em 2008, Marisa Monte lançou – depois de 10 anos pesquisando, escrevendo e filmando – o documentário “O Mistério do Samba”, dirigido por Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollanda.
Acho importante lembrar aqui, que Marisa Monte é uma das vozes mais importantes da música brasileira contemporânea. Ela que, aos 14 anos estudou canto lírico, já tinha desde cedo, um ouvido para a música fora do normal. Estudou muito, aqui no Brasil e por anos na Itália e, ao retornar para seu país, se encontrou com sua voz, mergulhou nas suas raízes e fez grandes parcerias que a tornaram essa artista competente que é hoje.
Mas eu não vim aqui falar de Marisa cantora/compositora/instrumentista/arranjadora/diretora/produtora. O que eu quero na verdade é falar desse documentário que ela produziu em 2008, que foi de onde saiu a minha inspiração para escrever esta coluna.
Falar da importância desse filme, que se tornou um documento tão valioso para a nossa cultura e, principalmente, para o samba; falar da abertura que ela, sendo quem é teve, para adquirir tudo que era preciso para ser mostrado no filme como ela queria; de assisti-la batendo papo com figuras importantes do samba, nos morros do Rio e colhendo depoimentos inéditos, deixando-nos mais próximos desse mundo e, por fim, de presenciar a oportunidade que ela teve na época, de ter acesso a sambas nunca gravados, para decifra-los e passá-los adiante fazendo com que essas histórias jamais desaparecessem já que por décadas estavam “esquecidos”.
Eu, particularmente acredito que, essa obra produzida por Marisa é um documentário tão essencial para a nossa cultura como “Buena Vista Social Club” – idealizado pelo guitarrista Ry Cooder e dirigido por Wim Wenders – é para a cultura latino-cubana por exemplo, porque a essência é a mesma: resgatar uma cultura, exaltar uma memória e decifrar o significado dos respectivos gêneros para fomentar essa cultura e o seu povo.
Então, podemos dizer que, “O Mistério do Samba” é o nosso “Buena Vista Social Club”, que traz a tona a história de músicos cubanos veteranos, enquanto que “O Mistério…” trata de reconstruir os passos e laços de toda a cultura de uma comunidade e resgata a cultura do nosso samba – nesse caso a cultura do samba carioca, mais precisamente da Portela, um dos seus pilares mais sólidos.
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Mais do que recuperar músicos e compositores esquecidos – que Paulinho da Viola fez lá nos anos 60 – o que Marisa Monte, Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollanda fizeram nesse documentário é o registro vivo de uma arte em constante movimento, não esquecendo novamente que os depoimentos foram gravados ao longo de 10 anos!
Existem memórias que ficam fixas na nossa cabeça, quando se termina de assistir o filme, que necessitam de um tempo para uma reflexão e, porque não também, de um bate papo para absorver melhor as mensagens e experiências que o filme nos traz.
Um dos momentos mais significativos do filme é quando a pastora Eunice, com seus quase 90 anos na época, ensina a um grupo de meninos e meninas os passos do “miudinho”, que ela aprendera diretamente com Paulo da Portela (1901-1949), fundador e figura máxima da escola. Tem também as falas e suas respectivas imagens de Argemiro Patrocínio e Jair do Cavaquinho, que faleceram depois das filmagens, tornando o documentário ainda mais precioso, com seus depoimentos lúcidos e bem-humorados, juntamente com o registro dos cantos e das danças.
O responsável por fazer a ponte entre a Velha Guarda e Marisa Monte – tanto em termos de geração como de formação – foi ninguém mais que Paulinho da Viola que, através de uma conversa entre os dois em que Marisa conta o que a levou a buscar a Velha Guarda, ela diz: “Eu sentia que o mundo poderia ser melhor com esses sambas“…
Ela tinha toda a razão, porque o meu mundo, por exemplo, ficou infinitamente mais rico e, consequentemente, melhor.
Outra passagem extraordinária do filme e que é tão significativa e tão familiar para a comunidade do samba, é dada pelo acaso: uma senhora vem pela rua com sua sacola de compras e, ao ouvir o samba que acontece na quadra da escola, passa a sambar na calçada mostrando ser uma passista de primeira e, captar essa interação entre o samba e o ambiente social que o produz, é uma das maiores virtudes do documentário.
Temos também o privilégio de ao analisar esse filme acompanhar os passos de Marisa na tentativa de recuperar essas composições das décadas de 40 e 50, que eram consideradas aparentemente esquecidas. Com uma infinita paciência e ciência do seu objetivo, ela conversa com os últimos descendentes da Velha Guarda, conseguindo puxar de um, a lembrança de uma estrofe, de outro a rima de um verso e, do outro adiante, a história de um refrão. A cena em que a viúva do grande Manacéa encontra uma gaveta cheia de fitas cassete e letras datilografadas, dá ao fato em si, a dimensão de um achado documental de valor inestimável! Uma riqueza absoluta!
As imagens que correspondem as imagens atuais no filme, se alternam com o material do arquivo e trechos do making off do disco “Tudo Azul”, que Marisa Monte gravou com a Velha Guarda da Portela em 1999. E, no decorrer do filme é possível notar ainda, de como Monarco se tornou um cantor melhor com a idade, com sua experiência e sua rouquidão e ainda constatar a importância permanente das mulheres nesse universo porque, embora não compusessem, eram elas, as pastoras, que decidiam se um samba seria adotado ou não pela escola.
Precisamos entender a importância do acesso a esse e a tantos outros documentários que têm o samba como tema principal, porém, quando optei por falar de “O Mistério do Samba”, é pelo fato dele ser grande, no sentido de produção, técnica e alcance; dele ter sido exibido em praticamente todas as salas de cinema de arte do país, por ser considerado o retrato de uma cultura que o configura uma obra; do filme ter sido aplaudido de pé nos Festivais de Cinema na Europa e de ter recebido diversos prêmios lá fora…
É imensamente gratificante saber que uma parte da história do samba foi contada através de uma competente e respeitável artista, que não mediu esforços e nem tempo para fazê-lo. Que foi atrás de patrocínio e apoio da ANCINE e Lei Rouanet junto ao Ministério da Cultura finalizando assim, seu trabalho impecável.
Ela aproveitou todas as chances que lhe foram dadas dentro do universo do samba e fez bonito, porque, o filme em si é pura poesia, que acompanha uma belíssima fotografia, com uma direção redonda, que condensa o que o samba tem como essência: paixão, beleza, história e tradição transformando esse filme, em um dos documentos mais valiosos da história do nosso samba.
Quem puder alugar ou até mesmo comprar, será um ótimo investimento, para rever sempre que bater saudade de todas aquelas vozes!
Filme: O Mistério do Samba
Gênero: Documentário
Subgênero: Musical
Diretor: Carolina Jabor / Lula Buarque de Hollanda
Duração: 88 min
Ano: 2008
Produção: Leonardo Netto / Lula Buarque de Hollanda / Marisa Monte
Direção de Fotografia: Marcio Menezes /
Toca Seabra
Montagem: Natara Ney
Som Direto: George Saldanha / Jorge Saldanha / Yan Saldanha
Mixagem: Denilson Lopes
Roteiro: Carolina Jabor / Leonardo Netto
Lula Buarque de Hollanda / Marisa Monte / Natara Ney
Edição de som: Denilson Campos
Pesquisa: Marisa Monte
Direção Musical: Marisa Monte
Produção Associada: Denise Chaer
Letícia Monte
*Cinthia Filomeno é artista visual, pós-graduada em Fundamentos da Cultura e das Artes pelo Instituto de Artes da UNESP, escritora e pesquisadora do samba, e autora do livro Samba: Uma Cultura Popular Brasileira