Denis Castilho*, Pragmatismo Político
Dados divulgados pelo Tesouro Nacional revelam que 58% da verba para brigadas contra incêndios florestais foi cortada pelo governo federal entre 2019 e 2020. O corte ocorreu justamente no momento em que as queimadas na Amazônia registraram aumento de 30% (Inpe, 2020). Quanto ao Pantanal, entre janeiro e agosto deste ano, houve aumento de 240% na quantidade de focos de incêndio e mais de 15% de sua extensão, conforme o Instituto SOS Pantanal, já foi atingida pelo fogo.
Nos primeiros dezesseis dias, este mês já apresenta o maior número de incêndios já registrados pela série histórica de setembro. São 5.603 focos de queimadas, número três vezes maior do que a média do mês. Com este ritmo, o Pantanal alcançará o maior número de queimadas já registrado em apenas um mês.
Mas há de se lembrar também do Cerrado. Além das chamas que avançam sobre suas áreas e dos milhares de focos registrados nos últimos dias, o desaparecimento de nascentes ascende um alerta que há muito vem sendo pautado por professores/pesquisadores.
Se considerarmos que significativa parte das águas do Pantanal nascem no Cerrado, um dado somado ao outro não deixa dúvida quanto ao colapso hídrico que se aproxima. Mesmo assim, enquanto o maior refúgio de araras azuis do mundo é destruído, o governo afirmou na última quarta-feira (16 de setembro) que “há críticas desproporcionais ao Pantanal e Amazônia”. O vice, Amilton Mourão, novamente questionou os dados do Inpe, conforme mostra reportagem de Watanab (2020).
Não será exagero, aliás, se escalões do governo adotarem as mesmas justificativas de apoiadores fervorosos ao dizerem que a culpa é das árvores que “inflamam o fogo” nestes meses quentes e com baixa umidade do ar. Os argumentos e pretextos mais esdrúxulos possíveis não terminam aí. Mas não é preciso dizê-los.
A diferença entre fogo como agente ecológico e fogo criminoso
O fogo não é de hoje, obviamente. Além disso, é um dos temas mais controversos quando se trata de paisagens naturais, uma vez que algumas formações, como a dos campos de Cerrado, possuem relação com alguns tipos de queimadas. Um importante estudioso deste assunto foi Itaboraí Velasco Nascimento, dedicado professor de geografia do Instituto do Trópico Subúmido da PUC-Goiás.
Seus trabalhos mostram, com base em muita pesquisa, que o fogo realmente é um agente ecológico em determinadas formações do Cerrado. Algumas espécies arbustivas, inclusive, são chamadas de fênix em alusão à sua capacidade de renovação e de rebrota. Em paisagens mais abertas, as queimadas naturais ou controladas favorecem a germinação de algumas espécies e a manutenção de características evolutivas adquiridas por milhares de anos.
Leia aqui todos os textos de Denis Castilho
A relação com o fogo, contudo, é bastante restrita a ambientes muito específicos. “Nas paisagens de maior porte, o acúmulo de matéria orgânica originando horizontes húmicos e biomassa são suficientes para gerar efeitos catastróficos como em qualquer formação florestada”, argumenta Nascimento (2001). Além disso, é preciso destacar que o fogo estudado pelo professor diz respeito às paisagens adaptadas e envoltas por funções ecologicamente equilibradas. Nelas, a própria origem do fogo é limitada e muito bem adaptada.
Isso mostra que há uma diferença muito importante entre o fogo como fator ecológico e o fogo criminoso que consome áreas inteiras do Pantanal, da Amazônia e de paisagens florestadas do Cerrado. Nesse contexto de aumento do desmatamento e de profundos desequilíbrios causados por interferências criminosas, as brigadas de incêndios florestais exercem papel fundamental na prevenção, no manejo e controle de queimadas.
O corte de verba deste tipo de serviço justamente no momento em que o país arde em chamas, é criminoso e não pode ser justificado por argumentos tão vis como os do governo. Ninguém é ingênuo em acreditar que o fogo apareceu somente agora. Por outro lado, a naturalização das queimadas criminosas estampa um elemento muito pontual e que precisa ser dito.
A opção deliberada por um modelo predatório
A indiferença às críticas e o questionamento do governo ao Inpe, além de guardar relação com o negacionismo, evidencia uma opção deliberada, não à toa que de todo recurso para preservação disponível ao Ministério do Meio Ambiente, apenas 0,4% foi aplicado neste ano (Prazeres, 2020). O governo faz vista grossa e minimiza as queimadas e desmatamentos porque pactua com agentes econômicos que praticam um modelo produtivo baseado na ocupação ilegal de áreas de preservação e terras indígenas, na mineração predatória e nos refúgios da vida silvestre.
Ocorre que essa postura ironicamente trará prejuízos ascendentes ao próprio agronegócio do país. Mas isso não ocorrerá por conta de pressões que fazem parte dos imperativos da geopolítica mundial, como o que ocorreu na última quarta-feira (16), quando uma carta assinada por oito países europeus (Alemanha, Dinamarca, França, Itália, Holanda, Noruega, Reino Unido e Bélgica) foi entregue ao vice-presidente.
A carta cobra do governo brasileiro iniciativas efetivas para combater o avanço do desmatamento. “A tendência crescente de desflorestamento no Brasil está tornando mais difícil” o investimento no país, diz a carta (Gomes, 2020). A retórica de investidores de Amsterdã, que corroboram com a carta, calha muito mais como marketing do que, necessariamente, com uma prática que o guia.
Fato é que, apesar do economicismo travestido de ambientalismo pautar essa “ironia do descaso”, ela não deixa de ser didática. Contudo, o que, de fato, trará prejuízos incalculáveis ao país diz respeito sobretudo à questão da água e ao modo como o Estado e agentes econômicos subestimam a sua condição em diferentes regiões do país. Isso envolve alguns pontos que não podem deixar de compor o debate ambiental no Brasil.
Três pontos indispensáveis ao debate
Dos pontos indispensáveis ao debate ambiental, três merecem destaque. O primeiro tange as implicações das queimadas na qualidade do ar, nos microclimas e, de modo especial, na pandemia, uma vez que o modelo produtivo que se nutre de desmatamentos e que se reproduz na predação desmedida, é o mesmo que gestou o novo coronavírus e que trará novas pandemias em espaços de tempo cada vez menores.
O segundo diz respeito à produção de commodities. Aqui, não é demais lembrar dos tradicionais esquemas didáticos muito trabalhados na Educação Básica. O ciclo d’água, do qual depende essa produção (assim como a de alimentos em geral), demanda condições específicas de solo, relevo, cobertura vegetal, etc. Esses esquemas são queimados todos os dias quando a lição é vencida pelo escalabro da atual política econômica.
Das áreas continuamente abertas pelo fogo e pelos desmatamentos criminosos, os arautos da balança comercial logo entenderão que nada funciona sem água, exceto suas práticas genocidas.
Mas se a situação aponta para escassez da água em áreas específicas, as tramas corporativas ensaiam uma criminosa forma de apropriação que pode desencadear privatizações, restrições ao seu acesso e adensamento de conflitos.
O terceiro ponto diz respeito ao futuro. Manoel de Barros, o grande poeta dos tuiuiús, foi alusivo ao versar sobre Bernardo, o guardador de águas. Exímio conhecedor das coisas simples, Bernardo também tentou de alguma forma, simples até, transmitir o devir do Pantanal.
O professor Itaboraí, assim como o poeta, não está mais entre nós. A dedicação de uma vida inteira ao ensino, à pesquisa e aos versos, apesar disso, não veio em vão. Por mais que o verbo queime, das coisas insignificantes, ainda resta a palavra. Ela, essa órfã, agora sangra, grita – arde em chamas. Do futuro que nos resta, que ele não deixe de regar nossos sonhos, pois assim como os arbustos, as palavras rebrotam e renovam nossa ação.
Referências
GOMES, Pedro Henrique. Desmatamento dificulta compra de produtos do Brasil, dizem europeus em carta a Mourão. G1 Amazônia, 16 set. 2020. Disponível em: https://glo.bo/3kp0u0c (acesso: 17/09/2020).
INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Queimadas. Disponível em: http://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/portal (acesso: 17/09/2020).
INSTITUTO SOS PANTANAL. Disponível em: http://www.sospantanal.org.br/ (acesso: 17/09/2020).
NASCIMENTO, Itaboraí Velasco. Cerrado: o fogo como agente ecológico. Territorium, vol. 8, 2001. Disponível em: https://bit.ly/3ms9lAh (acesso: 16/09/2020).
WATANAB, Phillippe. Queimadas no Pantanal já superam em 16 dias todos os setembros; mês deve ser o pior da história. Folha de São Paullo, 17 set. 2020. Disponível em: https://bit.ly/2FMGQMN (acesso: 17/09/2020).
PRAZERES, Leandro. Apesar de alegar falta de verbas, Salles gasta apenas 0,4% dos recursos livres do Ministério do Meio Ambiente. O Globo, 11 set. 2020. Disponível em: https://glo.bo/2FSdcp9 (acesso: 17/09/2020).
*Denis Castilho é doutor em geografia e professor do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás.
Acompanhe Pragmatismo Político no Instagram, Twitter e no Facebook