Violência contra a mulher e resistência: Mulheres na linha de frente ao combate à violência na América Latina
Camila Koenigstein*
Há quatro anos vivo em Buenos Aires e minha chegada foi marcada profundamente pelo mudança linguística, mas também pela conexão que estabeleci com o continente.
Enquanto cursava o Mestrado conheci pessoas de todos os lados, isso gerou não só meu tema de tese, mas curiosidade sobre a realidade dos diversos países que compõem América Latina.
Senti um compromisso com o feminismo, não só pelo movimento Ni una a menos, mas também por diversos coletivos que somam uma amplitude de temas que interessam às mulheres, transsexuais e travestis (corpos feminizados).
América Latina, embora sofra com índices absurdos de violência contra as mulheres e feminicídios, sendo um dos territórios mais perigosos para mulheres no mundo, com taxas que já chegaram a 3800 mortes no ano 2019, vem estabelecendo formas de resistência que colocam, nós -mulheres- na linha de frente no combate contra esse problema social de dimensões inimagináveis. Principalmente nesse momento de isolamento doméstico que evidencia que o lar é um dos ambientes mais hostis para nós mulheres.
Até o presente momento são: México, 987 mulheres mortas, Argentina, 160 e Brasil com 41.4% de aumento de violência contra as mulheres.
Os números assustadores que crescem anualmente, nunca frearam o trabalho das artistas mexicanas, Teresa Margolles e Mayra Martell, retratam a realidade vivida pelas mulheres no seu país. No caso específico de Mayra, seu trabalho aborda a violência na Colômbia e em outras regiões do continente.
O coletivo feminista Mariposas Auge (Argentina) performam a dor das mães que perderam suas filhas vítimas de sequestros para prostituição, muitas vezes meninas oriundas de áreas carentes que buscam emprego em jornais, quando e vão até o lugar já é tarde, entrando em um mundo que envolve escravidão, drogas, cafetinagem e política. No Brasil, devastado pela pandemia COVID-19, a antropóloga Débora Diniz, transforma números em memória.
Embora com trajetórias distintas Martell e Margolles trabalham na manutenção da memória de mulheres vítimas de feminicídios na cidade de Juarez.
Através de suas fotos e instalações, criam um espaços que contam as histórias e recordações da existência extirpada pelo poder exercido sobre seus corpos.
Como bem relatado pela antropóloga Rita Segato, corpos que se tornaram território usado tanto pelos poderes paralelos – narcotráfico – que operam em todo o continente, como o poder Estatal através do descaso, como também a violência doméstica, lugar que a mulher é vista como propriedade, expansão da territorialidade advinda do espaço público.
Pensar nas milhares de mulheres que jamais terão a possibilidade de manifestar todo o seu potencial no mundo pela violência que é exercida sobre elas, nos leva a refletir sobre militância e resistência, que se manifestam nas ruas, mas também de outras maneiras, mostrando que o esquecimento, que outrora era recorrente em relação a violência, hoje já não ocorre, pois há mulheres trabalhando formas de ressignificar essas vivências, resistindo ao esquecimento que geralmente acontece passado o tempo.
Quase sempre abordam algo relacionado a vítima, sobretudo, humanizando suas histórias, tornam o que era estatística, um número, em relatos de vida, seja pelas imagens, textos, entrevistas e performances .
Margolles, Tereza, Débora e o coletivo Mariposas Auge, denunciam os abusos, utilizando imagens, imagens que muitas vezes são usadas pela mídia de forma banal, culpabilizando essas mulheres pelo abuso sofrido e até mesmo a própria morte, quando sabemos que a causa primordial é a ordem política patriarcal, que envolve o poder dado ao homem.
Todas essas mulheres são expostas sem biografias, espetáculos televisionados, gerando furor nas massas que especulam, conversam sobre a barbárie do crime, como se essas mulheres não tivessem uma vida como todos nós, familiares, muitas vezes filhos, amigos, planos, desejos, pessoas que amavam e que eram amadas.
Vemos então, no trabalho delas, uma tentativa de recompor os fragmentos de vida, tentando apagar esse duplo assassinato, que nada mais é: primeiro do corpo e depois de sua memória.
Teresa Margolles, na obra Pesquisas (2016), nos mostrou nitidamente a importância da memória ao colocar lado a lado centenas de cartazes vandalizados de rostos de mulheres desaparecidas na Ciudad Juarez.
Ciudad Juárez es el escenario de otras obras de la muestra, entre ellas Pesquisas, una instalación en pared de 30 grandes carteles refotografiados de mujeres desaparecidas, y Sonidos de la muerte, una obra de audio que utiliza grabaciones en lugares donde se han encontrado cuerpos de mujeres asesinadas. Estas dos obras hablan directamente de la violencia contra las mujeres, la inacción o indiferencia de la policía, y otras historias similares en el mundo de mujeres desaparecidas asesinada.
Nesse trabalho tão profundo e doloroso expõe a amplitude da violência que nos assola, mostra que a morte não basta, é necessário, nos cartazes colados em postes e paredes pelos seus familiares, a profanação, destruição e sátira do pouco que resta da imagem delas, ou seja, são homens que seguem expondo o poder e a força destrutiva que compõem as estruturas patriarcais.
No caso de Mayra Martell, nascida na cidade de Juarez, fez da sua vivência instrumento para realizar o seu trabalho, delicado, mas ao mesmo tempo de uma força simbólica impressionante.
Suas fotos dos quartos das vítimas, deixados pelos pais intocáveis como quando suas filhas desapareceram, retratam a existência delas, seus planos, cartas, desenhos, pinturas, vaidade, toda uma vida deixada prematuramente.
Mayra, capta à atmosfera, a vida que ali habitava, e o vazio nas famílias, a dor inominável da perda.
Ensayo de la identidad, es un recuento fotográfico de uno de los hechos más perturbadores en Ciudad Juárez: la desaparición de mujeres. De manera minuciosa, el trabajo de Martell rastrea la identidad de estas mujeres desaparecidas y lo que permanece en su ausencia, en una ciudad cuyo tejido social se ha desgarrado por la violencia. Este proyecto no sólo comprende fotografías sino también entrevistas y diarios de trabajo.
Atualmente na Argentina, mulheres que fazem parte de diversos coletivos usam o corpo como mecanismo de protesto, às Mariposas Auge, coletivo formado em 2016, apoiam mães que tiveram suas filhas sequestradas para escravidão sexual, prostituição e uso para a pornografia, o que já gerou um número enorme de mortes, traumas e abusos.
Todas às sextas feiras, na terceira semana do mês, vestidas de vermelho e portando o rosto das desaparecidas no peito, performam representando uma nova forma de protesto, onde o corpo é força e resistência.
A foto que antes era guardada em casa, agora é exposta publicamente, gerando vergonha nos homens que claramente se sentem “constrangidos” diante dessas mulheres de vermelho que marcham em círculo por 1:00 hora, e na badalada do relógio, às 18:00 horas, param, formam uma fila e abraçam às mães que tiveram suas filhas mortas ou que seguem desaparecidas.
Leia aqui todos os textos de Camila Koenigstein
Mulheres carregando mulheres, nada mais simbólico sobre nossa consciência da necessidade de união contra mortes e desaparecimentos.
Somos un grupo de personas que rechaza el sistema patriarcal y la violencia de género en todas sus formas. Tenemos como objetivo visibilizar y problematizar el delito de la trata de personas con fines de explotación sexual a través de performances urbanas.
Nos organizamos para advertir, generar consciencia, provocar, denunciar el sistema prostituyente y presionar a los gobiernos a erradicarlo.
Confiamos en el poder de la unión grupal como herramienta […[ cuerpo como signo, en la potencia de nuestros deseos en acción.
Para nosotrxs la mariposa como símbolo es transformación, en libertad y liberación. Tomamos el nombre en referencia a las hermanas Patria, Minerva y María Teresa Mirabal, conocidas como Las Mariposas, tres revolucionarias víctimas de la tiranía de Trujillo. Su asesinato, el 25 de noviembre de 1960, impulsó el fin de los dictadores en República Dominicana. Luego, la ONU declaró el 25 de noviembre como el Día Internacional contra la violencia hacia la mujer.
O contato entre os corpos femininos que se apoiam em uma dor que somente mulheres sentem, oriundo da violência cotidiana e da perda, funciona como uma espécie de catarse. As mariposas “voam” depois, esperando o próximo mês, um gesto simbólico que representa nossa liberdade de ir e vir tão cerceada.
A última ação no que tange memória saiu da mente da antropóloga brasileira, ameaçada de morte por sua defesa ao aborto, Débora Diniz, que diante das mortes das mulheres brasileiras vítimas do COVID-19, decidiu abrir uma página no instagram e criar, como ela mesmo definiu recentemente, um relicário das mulheres mortas pela pandemia.
Relicário quer dizer pedaços, restos, pequenas lembranças de alguém. É o nome [da conta]. Quando comecei a ler as notícias sobre pessoas mortas na pandemia, me impressionava como relatavam os casos com dois grandes marcos: parecia mais abertura de prontuário médico, com comorbidades anteriores daquela pessoa para dizer que ela era obesa, tinha diabetes ou era idosa. E segundo, elas não tinham nomes ou fotos, elas eram números de uma estatística.
De forma delicada e sem sensacionalismo, criou um espaço imagético que identifica a vida de cada uma. As imagens remetem ao sagrado, suas histórias são relatadas, e de números passam a serem mulheres novamente.
Acreditamos que entramos em outros tempos, tempos de resistência e militância ampla, de mostrar que nossos corpos estão presentes por aquelas ausentes. A fragilidade tão relacionada ao corpo feminino deixa de existir, representando força viva, criativa, ativa para alterar nossa realidade.
A busca por reflexão é um exercício que possibilita que homens e mulheres se confrontarem com a realidade de forma visual, sensorial, o que permite a aproximação com sofrimento.
Estamos voando alto, nossa escrita e vozes roubadas por tanto tempo, ressoam por todo continente, movimentando as estruturas e gerando cada vez mais força na busca por justiça e igualdade, andamos dizendo: estamos aqui, basta de violência, pois somos mulheres e não seremos mais silenciadas, enquanto uma menina, uma mulher sofrer, seguiremos gritando, basta!
Referências:
http://www.camaraoscura.com.ar/autor.php?autor=65
https://donaronline.org/madres-victimas-de-trata/madres-victimas-de-trata
https://www.forbes.com.mx/politica-feminicidio-aumenta-amlo-neoliberalismo/
SEGATO, Rita. Contra pedagogías de la crueldad. Buenos Aires, Argentina. Editorial Prometeo. 2018.
*Camila Koenigstein é graduada em História, pela Pontifícia Universidade Católica – SP, e pós-graduada em Sociopsicologia, pela Fundação de Sociologia e Política – SP. Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina y Caribe pela Universidade de Buenos Aires (UBA).
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