Sem nunca ter sido julgado, jovem de 19 anos morre na prisão. Familiares contam que Gabriel era “menino de ouro” e denunciam policiais. Para médico sanitarista, risco de meningite em prisões é pior do que o da Covid-19
O motoboy Gabriel Prazeres Gomes, 19 anos, era um brincalhão nato. Tudo para ele era alegria. E ele também tinha muitos sonhos. Nos últimos dias do mês de julho, sua mãe realizou um deles: uma moto. Que ele usaria para trabalhar, ajudando em casa e construindo o futuro com a namorada, com quem sonhava em casar. Mas todos os seus sonhos foram interrompidos – duas vezes.
A primeira interrupção foi quando o jovem foi preso. 131,8 g de drogas lhe custaram a liberdade. Drogas essas, assegura a irmã mais velha, que foram fruto de um flagrante forjado pela polícia. Na madrugada do dia 31 de julho, Gabriel foi abordado pelos PMs Henrique Romualdo da Silva e Fernando de Sousa David, ambos da 3ª Companhia do 49º Batalhão da PM paulista.
No 33º DP (Pirituba), os policiais falaram que foram chamados para uma ocorrência de perturbação de sossego quando notaram uma moto preta com duas pessoas. Segundo os PMs, o garupa ficou olhando para atrás “demonstrando nervosismo” e fugiram quando ouviram o sinal para parada, quando foram acompanhados e “caíram ao solo”.
Para o delegado João Roberto de Lemos Barbassa, do 33º DP, Gabriel deveria ter sido preso em flagrante por tráfico de drogas. O promotor Cláudio Henrique Bastos Giannini, do Ministério Público de São Paulo, também teve esse entendimento, assim como o juiz Fabio Pando de Matos, do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Morador do Jaraguá, zona noroeste da cidade de SP, ele passou a viver no CDP de Belém, na zona leste de SP, e, posteriormente, no CDP II de Osasco, na Grande SP. Mesmo sem julgamento, sua pena foi a morte. Em 27 de setembro, Gabriel foi levado para o Hospital Regional Dr. Vivaldo Martins Simões, de Osasco, e internado com “crise convulsiva seguida de rebaixamento de nível de consciência”. Morreu às 3h38 do dia 28 de setembro no hospital. Foi enterrado no Cemitério de Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte da cidade de São Paulo.
Sua família sequer sabia que ele estava doente ou que havia sido internado. Só foram comunicados da morte. Ainda muito abalada, Rita*, irmã de Gabriel, conta como o seu irmão era um “menino de ouro”, que cuidava da mãe como ninguém.
Negro e pobre, narra a irmã, Gabriel era constantemente abordado pela PM. “E eram sempre os mesmos policiais. O Gabriel era muito brincalhão e não levava as coisas muito a sério e eu acho que isso irritava os policiais, talvez por ele rir na hora errada”.
“Eu já presenciei abordagens em que ele era ameaçado por policiais. Foi aí que tudo começou a dar errado. Os policiais acabaram ‘forjando’ ele. Temos duas testemunhas que ouviram esses mesmos policiais falando que ‘forjariam’ ele. Quando pegaram ele sozinho fizeram isso. Mas não temos provas”, lamenta.
Gabriel não foi o único caso de morte no CDP II de Osasco neste ano. Em 18 de agosto, Ildivan Neves dos Santos, 21 anos, também preso por tráfico de drogas, morreu após ter problemas pulmonares e nos rins. Ele iria para o regime semi-aberto onze dias depois. Assim como Gabriel, Ildivan tinha superado o coronavírus, apesar de infectado. A suspeita da morte foi informada como decorrente de Covid-19, mas a família contesta. O jovem, que tinha diabetes desde os 11 anos, deveria tomar insulina diariamente.
“Gabriel ficou uns 20 dias preso no CDP do Belém e lá pegou coronavírus. Por isso ficou isolado e eu não podia fazer carteirinha para visita virtual e nenhuma carta que eu fizesse seria entregue para ele. Até os telegramas voltaram. Ficamos totalmente sem comunicação”, conta Rita.
A transferência para o CDP de Osasco foi feita em 7 de setembro. “Quando ligamos deram a mesma informação, que ele já tinha melhorado da Covid porque fazia quase um mês que ele tinha pegado, mas que ele estava no isolamento, que depois seria encaminhado para um raio”.
“Nenhuma das cartas chegaram nele pelo que ele falou por videochamada para o advogado. O advogado falou com ele dois dias antes do óbito, mas ele não disse que estava doente. Como dois dias antes ele estava bem e no domingo ele veio a óbito por meningite e por esses edemas que ninguém sabe de onde veio?”, lamenta a irmã.
O médico sanitarista Daniel Dourado, advogado e integrante do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP (Universidade de São Paulo), aponta que, apesar de o tipo de meningite não estar indicado no atestado de óbito, a causa da morte de Gabriel foi provavelmente meningite bacteriana, um tipo específico da enfermidade, “que evoluiu para doença meningocócica, que é uma doença sistémica que afeta muito o jovem e, sem o tratamento adequado, a letalidade é alta”.
“No calendário de prevenção, existe vacinação para meningite C, mas na rede privada tem outros tipos de vacinas, ACWY e B, que não são oferecidas [pela rede pública] e a população não é vacinada. Essas são vacinas caras, de 400 e 600 reais a dose”, explica Dourado.
O médico sanitarista explica que a doença é ainda mais perigosa para o perfil da população carcerária: “Jovens em ambientes de muita proximidade, já que é uma doença que se transmite por contato, sobretudo por condições de higiene precária”.
“É um espaço bastante propício para a disseminação de doenças como a meningite, que é uma das mais graves. Essa é uma doença que precisa ser tratada rápido, com internação e antibióticos e tratamento de suporte, como hidratação”, detalha.
Assim como a morte de agosto, aponta Dourado, a situação deve ter sido semelhante: Gabriel pode ter ficado ali, por horas e horas preciosas, passando mal e o quadro se agravando até alguém se dar conta. “A forma que a sociedade brasileira trata a população carcerária é uma expressão de como estamos desadaptados socialmente. A mortalidade da meningite, sem tratamento adequado, é bem maior do que da Covid”.
“Um garoto que foi preso com 130g de qualquer que seja a droga não faz sentido estar encarcerado. E há milhares como ele. Temos que chamar a atenção para isso porque sabemos que é uma população invisível. A molecada é abandonada antes e depois do cárcere é pior ainda”, critica o médico.
“Só telefonam quando o preso tá morto”
Com a segunda morte em pouco tempo, familiares de outros detentos temem pela vida de quem permanece preso. Se não bastasse a pandemia do coronavírus, as famílias temem outras doenças: de sarna e furúnculos até meningite e pneumonia. Até a última segunda-feira (5/10), segundo dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), o país registrava 28.131 casos confirmados de Covid-19 e 115 óbitos entre aprisionados. Só no estado de São Paulo eram 7.789 casos confirmados e 27 óbitos.
Água fechada, comida precária com a última refeição do dia às 16h e superlotação são algumas das queixas constantes das famílias. “A gente sempre tem que mandar remédios e pomadas para diminuir as coceiras. Só podemos entrar com toalha de 6 a 6 meses. Essa pessoa vai ser curada da sarna? Eu creio que não”, critica Silvana*, mãe de um detento preso no mesmo raio em que Ildivan, primeiro caso de morte.
“Meu filho teve coronavírus e ficou isolado em uma sala superlotada. Eles só levam para o hospital se tem febre. Os dois meninos que morreram já tinham tido covid. A gente não sabe se tem sequelas, se eu ligar lá para saber vão me destratar. Não sei como foi o tratamento dele. Meu filho pode ter ficado com sequela e eu não sei. E fora a pneumonia, porque não tem chuveiro quente. Eles saem do isolamento e tomam banho gelado”, aponta.
“Hoje estão vivos, amanhã não sabemos. O medo é constante porque eles só telefonam quando o preso tá morto no hospital. Se o meu filho é internado eles não me avisam, só me avisam se ele morrer. Eu durmo e acordo com o meu telefone do lado pedindo a Deus que aquele CDP nunca me ligue, porque eu sei que na hora que ele tocar é morte”, completa a mãe.
Para Roberta*, outra mãe que tem o filho preso no CDP II de Osasco, o sentimento é parecido. “Tudo o que a gente pede é ajuda, porque a situação é desesperadora. É um sistema muito omisso, negligente e imprudente. A omissão de socorro é algo que acontece com muita frequência, dois óbitos em tão pouco tempo não é algo normal”.
Ela conta que não consegue ter contato com o filho, já que ao ligar para pedir informações é mal tratada, as visitas estão suspensas e os e-mails, que devem acontecer duas vezes por semana, de acordo com as regras da Secretaria da Administração Penitenciária, estão demorando. “Eles nos roubam o direito de saber dos nossos parentes, só no dão direito de sepultar quem a gente ama”.
“A visita virtual é uma tortura em todos os sentidos. A gente não pode falar o que pensa, eles não podem falar o que acontece porque tem um funcionário do lado. Eu fiz uma vez e não quero mais. São cinco muitos de muito sofrimento”, critica Roberta.
“Para eles terem direito a essa chamada de vídeo, eles são tirados da cama às 5h da manhã, são levados para a inclusão e de lá vão para o castigo. Todo esse tempo algemados. Eles vêm falar com a gente algemados. Eles já estão excluídos da sociedade, tudo o que queremos é que eles tenham direito a uma alimentação e um cuidado de saúde digno. São vidas que estão lá dentro”.
*O nome das entrevistadas foi alterado para protegê-las de eventuais represálias.
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